Por tradição, o Brasil é o primeiro país a falar nessas reuniões – antecedido apenas pelo secretário-geral das Nações Unidas e pelo presidente da própria Assembleia Geral.
Lula retornou ao palco da ONU após 14 anos – discursou como presidente pela última vez na Assembleia-Geral de 2009. A primeira participação foi em 2003, vinte anos atrás.
Leia abaixo a
íntegra do discurso de Lula:
Meus cumprimentos
ao Presidente da Assembleia Geral, Embaixador Dennis Francis, de Trinidad e
Tobago.
É uma satisfação
ser antecedido pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres.
Saúdo cada um dos
Chefes de Estado e de Governo e delegadas e delegados presentes.
Presto minha
homenagem ao nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello e 21 outros funcionários
desta Organização, vítimas do brutal atentado em Bagdá, há 20 anos.
Desejo igualmente
expressar minhas condolências às vítimas do terremoto no Marrocos e das
tempestades que atingiram a Líbia.
A exemplo do que
ocorreu recentemente no estado do Rio Grande do Sul no meu país, essas
tragédias ceifam vidas e causam perdas irreparáveis.
Nossos pensamentos
e orações estão com todas as vítimas e seus familiares.
Senhoras e
Senhores, há vinte anos, ocupei esta tribuna pela primeira vez.
E disse, naquele 23
de setembro de 2003:
"Que minhas
primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na
capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de
convivência”
Volto hoje para dizer que mantenho minha inabalável confiança na humanidade.
Naquela época, o
mundo ainda não havia se dado conta da gravidade da crise climática.
Hoje, ela bate às
nossas portas, destroi nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e
impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres.
A fome, tema
central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735
milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que
comer amanhã.
O mundo está cada
vez mais desigual.
Os 10 maiores
bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade.
O destino de cada
criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe.
A parte do mundo em
que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão
determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida.
Se irá fazer todas
as refeições ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e
jantar diariamente.
Se terá acesso à
saúde, ou se irá sucumbir a doenças que já poderiam ter sido erradicadas.
Se completará os
estudos e conseguirá um emprego de qualidade, ou se fará parte da legião de
desempregados, subempregados e desalentados que não para de crescer.
É preciso antes de
tudo vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno
natural.
Para vencer a
desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo.
Senhores e senhoras
Se hoje retorno na
honrosa condição de presidente do Brasil, é graças à vitória da democracia em
meu país.
A democracia
garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão.
A esperança, mais
uma vez, venceu o medo.
Nossa missão é unir
o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário,
generoso e alegre.
O Brasil está se
reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o
multilateralismo.
Como não me canso
de repetir, o Brasil está de volta.
Nosso país está de
volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios
globais.
Resgatamos o
universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com
todos.
A comunidade internacional está mergulhada em um turbilhão de crises múltiplas e simultâneas: a pandemia da Covid-19; a crise climática; e a insegurança alimentar e energética ampliadas por crescentes tensões geopolíticas.
O racismo, a
intolerância e a xenofobia se alastraram, incentivadas por novas tecnologias
criadas supostamente para nos aproximar.
Se tivéssemos que
resumir em uma única palavra esses desafios, ela seria desigualdade.
A desigualdade está
na raiz desses fenômenos ou atua para agravá-los.
A mais ampla e mais
ambiciosa ação coletiva da ONU voltada para o desenvolvimento – a Agenda 2030 –
pode se transformar no seu maior fracasso.
Estamos na metade
do período de implementação e ainda distantes das metas definidas.
A maior parte dos
objetivos de desenvolvimento sustentável caminha em ritmo lento.
O imperativo moral
e político de erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado.
Nesses sete anos
que nos restam, a redução das desigualdades dentro dos países e entre eles
deveria se tornar o objetivo-síntese da Agenda 2030.
Reduzir as
desigualdades dentro dos países requer incluir os pobres nos orçamentos
nacionais e fazer os ricos pagarem impostos proporcionais ao seu patrimônio.
No Brasil, estamos
comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento
sustentável, de maneira integrada e indivisível.
Queremos alcançar a
igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo
que adotaremos voluntariamente.
Lançamos o plano
Brasil sem Fome, que vai reunir uma série de iniciativas para reduzir a pobreza
e a insegurança alimentar.
Entre elas, está o
Bolsa Família, que se tornou referência mundial em programas de transferência
de renda para famílias que mantêm suas crianças vacinadas e na escola.
Inspirados na
brasileira Bertha Lutz, pioneira na defesa da igualdade de gênero na Carta da
ONU, aprovamos a lei que torna obrigatória a igualdade salarial entre mulheres
e homens no exercício da mesma função.
Combateremos o
feminicídio e todas as formas de violência contra as mulheres.
Seremos rigorosos
na defesa dos direitos de grupos LGBTQI+ e pessoas com deficiência.
Resgatamos a
participação social como ferramenta estratégica para a execução de políticas
públicas.
Senhor presidente
Agir contra a
mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas.
Os países ricos
cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao
clima.
A emergência
climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi
acordado.
Não é por outra
razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
São as populações
vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela
mudança do clima.
Os 10% mais ricos
da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono
lançado na atmosfera.
Nós, países em
desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo.
No Brasil, já
provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e
ambientalmente sustentável é possível.
Estamos na
vanguarda da transição energética, e nossa matriz já é uma das mais limpas do
mundo.
87% da nossa
energia elétrica provem de fontes limpas e renováveis.
A geração de
energia solar, eólica, biomassa, etanol e biodiesel cresce a cada ano.
É enorme o
potencial de produção de hidrogênio verde.
Com o Plano de
Transformação Ecológica, apostaremos na industrialização e infraestrutura
sustentáveis.
Retomamos uma
robusta e renovada agenda amazônica, com ações de fiscalização e combate a
crimes ambientais.
Ao longo dos
últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em
48%.
O mundo inteiro
sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si.
Sediamos, há um
mês, a Cúpula de Belém, no coração da Amazônia, e lançamos nova agenda de
colaboração entre os países que fazem parte daquele bioma.
Somos 50 milhões de
sul-americanos amazônidas, cujo futuro depende da ação decisiva e coordenada
dos países que detêm soberania sobre os territórios da região.
Também aprofundamos
o diálogo com outros países detentores de florestas tropicais da África e da
Ásia.
Queremos chegar à
COP 28 em Dubai com uma visão conjunta que reflita, sem qualquer tutela, as
prioridades de preservação das bacias Amazônica, do Congo e do Bornéu-Mekong a
partir das nossas necessidades.
Sem a mobilização
de recursos financeiros e tecnológicos não há como implementar o que decidimos
no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade.
A promessa de
destinar 100 bilhões de dólares – anualmente – para os países em
desenvolvimento permanece apenas isso, uma longa promessa.
Hoje esse valor
seria insuficiente para uma demanda que já chega à casa dos trilhões de
dólares.
Senhor presidente
O princípio sobre o
qual se assenta o multilateralismo – o da igualdade soberana entre as nações –
vem sendo corroído.
Nas principais
instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e
voto perderam fôlego.
Quando as
instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não
da solução.
No ano passado, o
FMI disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para
países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos.
A representação
desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável.
Não corrigimos os
excessos da desregulação dos mercados e da apologia do Estado mínimo.
As bases de uma
nova governança econômica não foram lançadas.
O BRICS surgiu na
esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover
a cooperação entre países emergentes.
A ampliação recente
do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a
pluralidade econômica, geográfica e política do século 21.
Somos uma força que
trabalha em prol de um comércio global mais justo num contexto de grave crise
do multilateralismo.
O protecionismo dos
países ricos ganhou força e a Organização Mundial do Comércio permanece
paralisada, em especial o seu sistema de solução de controvérsias.
Ninguém mais se
recorda da Rodada do Desenvolvimento de Doha.
Nesse ínterim, o
desemprego e a precarização do trabalho minaram a confiança das pessoas em
tempos melhores, em especial os jovens.
Os governos
precisam romper com a dissonância cada vez maior entre a “voz dos mercados” e a
“voz das ruas”.
O neoliberalismo
agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias.
Seu legado é uma
massa de deserdados e excluídos.
Em meio aos seus
escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem
soluções tão fáceis quanto equivocadas.
Muitos sucumbiram à
tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo,
conservador e autoritário.
Repudiamos uma
agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de
bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores.
Precisamos resgatar
as melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU.
Políticas ativas de
inclusão nos planos cultural, educacional e digital são essenciais para a
promoção dos valores democráticos e da defesa do Estado de Direito.
É fundamental
preservar a liberdade de imprensa.
Um jornalista, como
Julian Assange, não pode ser punido por informar a sociedade de maneira
transparente e legítima.
Nossa luta é contra
a desinformação e os crimes cibernéticos.
Aplicativos e
plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos.
Ao assumir a
presidência do G20 em dezembro próximo, não mediremos esforços para colocar no
centro da agenda internacional o combate às desigualdades em todas as suas
dimensões.
Sob o lema
"Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável", a presidência
brasileira vai articular inclusão social e combate à fome; desenvolvimento
sustentável e reforma das instituições de governança global.
Senhor presidente,
Não haverá
sustentabilidade nem prosperidade sem paz.
Os conflitos
armados são uma afronta à racionalidade humana.
Conhecemos os
horrores e os sofrimentos produzidos por todas as guerras.
A promoção de uma
cultura de paz é um dever de todos nós. Construí-la requer persistência e
vigilância.
É perturbador ver
que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor
novas ameaças.
Bem o demonstra a
dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino.
A este caso se
somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as
ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina
Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão.
Na Guatemala, há o
risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas.
A guerra da Ucrânia
escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e
princípios da Carta da ONU.
Não subestimamos as
dificuldades para alcançar a paz.
Mas nenhuma solução
será duradoura se não for baseada no diálogo.
Tenho reiterado que
é preciso trabalhar para criar espaço para negociações.
Investe-se muito em
armamentos e pouco em desenvolvimento.
No ano passado os
gastos militares somaram mais de 2 trilhões de dólares.
As despesas com
armas nucleares chegaram a 83 bilhões de dólares, valor vinte vezes superior ao
orçamento regular da ONU.
Estabilidade e
segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade.
A ONU nasceu para
ser a casa do entendimento e do diálogo.
A comunidade
internacional precisa escolher:
De um lado, está a
ampliação dos conflitos, o aprofundamento das desigualdades e a erosão do
Estado de Direito.
De outro, a
renovação das instituições multilaterais dedicadas à promoção da paz.
As sanções
unilaterais causam grande prejuízos à população dos países afetados.
Além de não
alcançarem seus alegados objetivos, dificultam os processos de mediação,
prevenção e resolução pacífica de conflitos.
O Brasil seguirá
denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo
econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país
como Estado patrocinador de terrorismo.
Continuaremos
críticos a toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de
reeditar a Guerra Fria.
O Conselho de
Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade.
Essa fragilidade
decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras
não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime.
Sua paralisia é a
prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe
maior representatividade e eficácia.
Senhoras e senhores
A desigualdade
precisa inspirar indignação.
Indignação com a
fome, a pobreza, a guerra, o desrespeito ao ser humano.
Somente movidos
pela força da indignação poderemos agir com vontade e determinação para vencer
a desigualdade e transformar efetivamente o mundo a nosso redor.
A ONU precisa
cumprir seu papel de construtora de um mundo mais justo, solidário e fraterno.
Mas só o fará se
seus membros tiverem a coragem de proclamar sua indignação com a desigualdade e
trabalhar incansavelmente para superá-la.
Muito obrigado.
G1 / EUA. Foto: Ricardo Stuckert / PR