Cerca de um terço do espaço aberto para aumento de gastos com a aprovação da PEC (proposta de emenda à Constituição) dos Precatórios não deve ir para as famílias mais carentes, via Auxílio Brasil. A medida deve reservar R$ 31 bilhões para atender interesses políticos e corporativos, por meio de emendas, financiamento de campanha e desoneração de grandes empresas.
Os cálculos são do
economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper e um dos criadores do teto de
gastos.
Ao contrário do que
diz o governo, que avalia que o espaço aberto com o drible no teto seria de
cerca de R$ 91,5 bilhões, Mendes estima que ele será de R$ 106 bilhões,
calculando um INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) de 9,5% este ano,
o que reajustaria o valor para cima.
Essa abertura viria
da mudança de indexador do teto de gastos e do não pagamento de precatórios.
Desse total, R$ 26 bilhões já seriam para reajuste de benefícios sociais, por
conta do aumento da inflação.
Dos R$ 80 bilhões
que sobram, R$ 47 bilhões vão para o Auxílio Brasil e R$ 2 bilhões para gastos
mínimos com saúde. Sobrariam, portanto, R$ 31 bilhões para emendas de relator,
financiamento de campanha e prorrogação de desonerações para grandes empresas.
“A desoneração da
folha é outra má notícia. Ela custa caro, não tem efeito de criação de
empregos, aumenta a margem de lucro das empresas, distorce incentivos e ainda
fomenta a burocracia no pagamento de impostos”, diz Mendes.
Para aumentar sua
popularidade, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) trabalha para viabilizar
o Auxílio Brasil, benefício social que deve ter valor mensal mínimo de R$ 400 e
substituir o Bolsa Família.
Para que isso
aconteça, no entanto, o presidente depende da aprovação da PEC dos Precatórios.
A proposta de emenda à Constituição, que cria um teto para pagamento das
dívidas judiciais reconhecidas, é considerada o plano A do governo para o novo
auxílio.
A medida foi
aprovada em primeiro turno na madrugada da última quinta-feira (4), sendo que a
diferença foi de apenas quatro votos. Com a aprovação apertada, o governo teme
que ela seja barrada no segundo turno.
O economista afirma
que em um momento de situação fiscal delicada, como o atual, o governo deveria
ter trabalhado de outras formas para abrir espaço para aumentar os benefícios
do novo Bolsa Família, compensando parte do choque inflacionário que afeta
sobretudo os mais pobres e que, em partes, se deve à gestão problemática da
política econômica.
Segundo Mendes,
também é preciso olhar para o que está acontecendo com as instituições, que
estabeleceram um sistema de emendas de relator que deu ao presidente da Câmara,
Arthur Lira (PP-AL), um poder de fogo fora do comum.
“A aprovação da PEC
deu mais um passo para destruir o teto de gastos e as regras regimentais da
Câmara.”
“Inventaram
emendas, fizeram o diabo, tudo sem limites. As regras na democracia existem
para que o jogo seja equilibrado, não para concentrar poder em um grupo que faz
o que quer. Com dinheiro na mão e capacidade para destruir regras, os
parlamentares que controlam o governo fazem tudo com interesses de curto
prazo”, completa.
Para ele, além dos
efeitos econômicos, as emendas de relator devem ter efeito negativo sobre a
renovação da representação política nas eleições do ano que vem, já que ficará
mais fácil para que os parlamentares se reelejam após beneficiarem suas bases.
MESMO
SEM PEC, DÁ PARA REFORÇAR BOLSA FAMÍLIA, DIZEM ECONOMISTAS
Embora crítico ao
teto de gastos, o economista José Luis Oreiro, da UnB (Universidade de
Brasília), destaca que o governo não precisaria furar o teto e lançar mão dos
precatórios para aumentar o auxílio aos mais pobres.
“O próprio
ex-presidente Michel Temer disse recentemente que a solução constitucional pra
viabilizar o Auxílio Brasil seria declarar estado de calamidade pública, sem
obrigar o governo de romper o teto de gastos.”
O que não seria
possível, desta forma, seria aprovar as emendas de relator, diz o economista.
“Os deputados que aprovaram a PEC dos Precatórios não teriam dinheiro para
fazer politicagem em seus redutos eleitorais. A preocupação deles nunca foi o
povo passando fome.”
“No fim de 2020, eu
e outros economistas já dizíamos que era preciso renovar a emenda do estado de
guerra, para permitir o pagamento do auxílio emergencial. Se isso tivesse sido
feito, não estaríamos na situação atual de ver pessoas buscando comida no
lixo.”
A economista da
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Tatiana Roque avalia que o teto
de gastos já não funcionava, mesmo antes da pandemia.
“O governo está
usando a chantagem de combater a pobreza de forma mentirosa, destruindo um
programa excelente, como o Bolsa Família, cujo reajuste poderia ser feito
flexibilizando o teto e acabando com as emendas de relator”, diz ela, que
também é vice-presidente da Rede Brasileira da Renda Básica.
“Estão comprando o
Congresso inteiro e usando as pessoas de menor renda como desculpa.”
Ela ressalta que
apenas o acerto para recalcular a inflação que reajusta o teto de gastos
—passando os meses de referência de junho a julho para janeiro a dezembro— já
poderia ser útil para recalcular o auxílio do novo Bolsa Família.
A economista
considera, ainda, que a discussão atual sobre rombo no teto de gastos já
demonstra que a regra fiscal não deveria ter sido aprovada pelo então
presidente Michel Temer.
“Constitucionalizar
uma medida de fiscal dessa forma não existe. O Brasil já tem leis nesse
sentido, e o teto foi colocado para colocar os gastos sociais em disputa uns
contra os outros.”
Roque destaca que a
votação em segundo turno da PEC dos Precatórios é a chance de evitar que o
governo dê um calote em credores que já ganharam seus direitos de receber na
Justiça.
“Toda essa confusão
comprova que a política econômica está totalmente à deriva e nada do que foi
prometido pelo [ministro da Economia] Paulo Guedes, mesmo que eu discorde, foi
feito. É uma catástrofe.”
O texto-base da PEC
dos Precatórios foi aprovado em primeiro turno ainda na madrugada, por 312
votos a 144. Agora, os deputados devem analisar propostas que modificam o
documento, que passa por um segundo turno de votação.
Em seguida, o texto segue para a apreciação do Senado, onde é preciso que tenha o apoio de ao menos 49 senadores, também com dois turnos de votação. Douglas Gavras/Folhapress / Foto: Roque de Sá/Agência Senado