Cerca de 5,4 milhões de beneficiários do Bolsa Família podem não ser contemplados pela promessa de aumento no valor do benefício e teriam até uma redução após a substituição do programa pelo Auxílio Brasil, segundo simulações do próprio governo obtidas pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI). O número corresponde a 37% dos 14,7 milhões de atuais beneficiários da política social.
O pagamento de um
“benefício compensatório de transição”, no mesmo valor da diferença, evitará
uma perda imediata. No entanto, esse benefício vai sendo reduzido à medida que
o Auxílio Brasil sofre reajustes. Na prática, essas famílias podem passar
alguns anos com o valor da ajuda congelado.
As estimativas
constam em parecer de mérito emitido pelo Ministério da Cidadania em 2 de
agosto, dias antes do envio da medida provisória que cria o Auxílio Brasil.
Como o governo ainda não garantiu os recursos necessários à ampliação do
programa, essas simulações foram feitas com o Orçamento já garantido de R$ 35
bilhões. O aumento no valor disponível pode impactar as estimativas finais. A
reportagem questionou a Cidadania sobre quantas famílias seriam afetadas no
cenário com mais recursos, mas não houve resposta sobre esse ponto até a
publicação.
Segundo os dados do
governo, a redução compensada pelo benefício temporário fica entre R$ 10 e R$
173. “Para 50% das famílias mais afetadas, a diminuição do valor do benefício será
de até R$ 46”, diz o parecer.
O economista
Ricardo Paes de Barros, pesquisador do Insper e um dos maiores especialistas do
País em políticas sociais, analisou o parecer, a pedido da reportagem, e avalia
que há duas possíveis explicações para as reduções.
Uma delas é a
extinção do benefício básico, hoje no valor de R$ 89, pago às famílias na faixa
de extrema pobreza (ou seja, têm renda familiar de até R$ 89 por pessoa).
Segundo Paes de Barros, esse benefício acaba tendo uma sobreposição com o valor
pago para superação da extrema pobreza, calculado caso a caso de acordo com o
valor que falta para aquela família sair dessa situação e que será mantido no
desenho do Auxílio Brasil.
O pesquisador
explica que, se uma família está próxima de superar a linha da extrema pobreza
(tem renda familiar por pessoa perto dos R$ 89), o desenho atual paga mais do
que o necessário para cumprir o objetivo do programa, num cenário de recursos
escassos e de outras famílias à espera de atendimento. E ela ainda vai receber
mais do que uma pessoa com renda semelhante, mas ligeiramente acima da linha de
extrema pobreza. Essa conclusão é citada pelo governo no documento.
A segunda razão
para eventuais perdas é mais negativa, segundo Paes de Barros. Trata-se do
corte no máximo de benefícios variáveis recebidos por filho menor de idade ou
gestante. Hoje, esse limite é de sete, mas vai cair para cinco com o Auxílio
Brasil. E deveria ser eliminado, na opinião do pesquisador. “Tem um quê aí de
regular o tamanho da família, não poder ser muito grande”, diz.
Na avaliação dele,
a regra levará a uma perda desnecessária, tanto para famílias hoje contempladas
pela 6.ª e 7.ª cota, quanto para quem se enquadra no limite dos cinco, mas pode
vir a extrapolar no futuro e não receberá nenhuma ajuda a mais. “Acho que devia
ser livre, independentemente do número. É difícil qualquer pessoa que já teve
um filho achar que, recebendo mais R$ 45, ou R$ 90 agora (com a mudança), vale
a pena ter um filho”, diz Paes de Barros.
O Ministério da
Cidadania informou que, na folha de setembro de 2021, havia 63.891 famílias que
recebiam uma soma de benefícios que se enquadra neste caso. Elas poderão
atingidas pela nova regra.
Incerteza
de reajuste
O sociólogo Luis
Henrique Paiva, ex-secretário Nacional de Renda de Cidadania e hoje pesquisador
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também analisou o parecer,
a pedido da reportagem, e observa que 90% das famílias terão uma “perda” de no
máximo R$ 85 no valor do benefício, que será imediatamente reposta pelo
benefício de transição.
A perda de maior
valor para todas as famílias, segundo Paiva, é a ausência de um critério de
reajuste, tanto da linha de elegibilidade, quanto do valor dos benefícios.
Hoje, os reajustes são discricionários, ou seja, concedidos quando há recurso
disponível no Orçamento. O último foi dado em 2018, no governo Michel Temer. Em
2019, já na administração Jair Bolsonaro, foi pago um 13.º benefício às
famílias, que proporcionou alívio naquele ano, mas não é permanente. Desde
2020, muitas foram transferidas para o auxílio emergencial, criado para
proteger famílias durante a pandemia de covid-19.
“Nada assegura que
haja reajuste desses benefícios. 15% do PIB que a gente faz de transferências
(em aposentadorias e BPC) têm reajuste automático e são direito, não têm fila,
e 0,4% (Bolsa Família) não tem”, afirma Paiva. Ele diz reconhecer que a
situação fiscal é delicada, mas acrescenta que nada justifica fazer o ajuste em
cima da contenção dos valores do Bolsa Família. “É uma questão de
amadurecimento institucional”, diz. O relator do Auxílio Brasil (PP-MG), tem
negociado a inclusão de uma regra que assegure ao menos a reposição da
inflação.
Se de um lado
algumas famílias podem “perder”, outras, possivelmente mais pobres e com filhos
mais jovens, terão aumento. O benefício para crianças de zero a três anos vai
subir de R$ 41 para R$ 90, pelas simulações internas do governo.
Como o parecer foi
produzido ainda sem o incremento no Orçamento do programa, a previsão é que,
num cenário sem recursos adicionais, o aumento no tíquete-médio seja de apenas
R$ 8,51, para R$ 194,45. O governo, no entanto, pretende elevar esse valor a R$
300. As famílias que forem beneficiadas pela nova estrutura recebem, no cenário
atual, incrementos de R$ 2 a R$ 511. “Para 50% das famílias beneficiadas o
valor do aumento será de até R$ 10”, diz o documento. Os valores podem subir
com um programa mais “turbinado”.
Um benefício da
mesma natureza que a compensação temporária do Auxílio Brasil foi usado em 2004
para ajudar famílias que receberiam menos na transição do Bolsa Escola e outros
auxílios para o Bolsa Família. O Ministério da Cidadania não informou quantas,
à época, se enquadraram nessa situação. Estadão Conteúdo / Foto reprodução/Internet