Meio século depois da sua morte, João da Goméia ainda é símbolo de diversidade, tolerância e pluralidade

“Quando seu corpo chegou à sepultura, no cemitério de Caxias, no Estado do Rio, um raio cortou o espaço, e desabou toda a água dos céus, ensopando as 3 mil pessoas que erguiam os braços e gritavam: Epa Hey, Iansã!”, conforme a narração da revista Manchete. Esse texto remete ao enterro de João da Goméia (1914-1971), o “rei do candomblé”, que ocorreu há 50 anos. Uma figura histórica e de imensa relevância para o candomblé no Brasil, Pai João – como também era conhecido – é tema do seminário João da Goméia – o Tempo da Diversidade, que o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP promove no próximo dia 24, terça-feira, às 14h30, com transmissão ao vivo pelo canal do IEB no Youtube. 


Nascido em Inhambupe, na Bahia, em 1914, João da Goméia iniciou sua história com o candomblé na infância. Ele sofria de dores de cabeça terríveis e, aos 16 anos, uma senhora octogenária, a “madrinha”, o acolheu. Foi ela que o levou para o pai de santo conhecido por Jubiabá – possivelmente o mesmo do romance homônimo de Jorge Amado. Este introduziu João da Goméia no candomblé e concluiu que as dores de cabeça que o atormentavam eram de fundo espiritual. Em 1937, o baiano participou ativamente do 2º Congresso Afro-brasileiro e se tornou uma referência religiosa para os estudiosos da época, como o então professor da USP Roger Bastide. Em 1948, o pai de santo deixou a Bahia e se mudou para o Rio de Janeiro, onde abriu um terreiro no município de Duque de Caxias. O local simples tornou-se famoso.


Uma das palestrantes do evento, a doutora em História Social da África Andrea Mendes afirma que, mesmo meio século após sua morte, João da Goméia permanece como um agente de luta contra a marginalização – racial, cultural, religiosa ou de gênero -, além de ser um dos mais importantes representantes das culturas afro-brasileiras de todos os tempos.


“Além de pai de santo, João da Goméia também era um artista fantástico”, destaca o professor Nielson Bezerra, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) – também palestrante do evento. “Era uma daquelas pessoas que podemos dizer que estavam além do seu tempo”. Por conta do candomblé e de sua projeção artística, João da Goméia foi personagem cotidiano nos principais jornais e revistas, que o consideravam o “rei do candomblé”, acrescenta o professor.

Andrea Mendes confirma que o título de “rei do candomblé” era bastante comum na imprensa, especialmente a partir da década de 1940. Segundo ela, João da Goméia estabeleceu uma relação muito próxima com os jornais, alcançando uma visibilidade nunca antes vista para um pai de santo. Seu terreiro em Duque de Caxias era frequentado por todas as camadas da sociedade: folcloristas, intelectuais, políticos, embaixadores e representantes da classe artística se misturavam com a classe trabalhadora da Baixada Fluminense. Ao mesmo tempo em que tinha contato com políticos poderosos como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, ele também foi defensor dos trabalhadores negros empobrecidos. “O terreiro sempre foi um lugar de acolhida para mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade”, detalha Bezerra.


A fama de João da Goméia se deve também à sua circulação no mundo do show business e do carnaval, continua Andrea. “Embora tenha sido muito criticado nos meios religiosos de matrizes africanas de seu tempo em função de tanta exposição, João da Goméia foi um dos maiores responsáveis pela expansão do candomblé no Sudeste brasileiro”, ressalta. 


Na década de 1940, o pai de santo revolucionou o candomblé ao aplicar as cores, o moderno e o brilho nas vestes do orixás, que até aquela época eram vestidos de forma simples. Joãozinho também era costureiro. Suas festas para os Orixás eram concorridas, porque muitas pessoas admiravam não só seu bailado, mas também a beleza das roupas produzidas por ele. João da Goméia ainda dançava, e atuou no filme Copacabana Mon Amour, de 1970, dirigido por Rogério Sganzerla. 


Mesmo com seu inegável talento, João da Goméia foi vítima de muitos preconceitos ao longo de sua vida, por ser jovem demais, pela suspeita de não ter sido iniciado corretamente, por ser homossexual e por expor demais o candomblé. Essa última acusação, que talvez tenha sido a mais recorrente, é “no mínimo curiosa”, uma vez que ele nunca expôs nenhum ritual privado do candomblé na imprensa, “e isso nos leva a crer que o que mais incomodava os seus críticos era a sua popularidade”, acredita Andrea Mendes.


“João da Goméia transborda a questão do candomblé”, resume Bezerra. Para ele, a representatividade do pai de santo baiano também está nas expressões artísticas afro-brasileiras, na luta pelo respeito à diversidade e à pluralidade religiosa em nossa sociedade. De acordo com o professor, o seminário é uma oportunidade para refletir sobre o direito à memória da população negra. Ele lembra que Duque de Caxias, a cidade de João da Goméia, hoje é um dos municípios da Baixada Fluminense que mais registram ataques e invasões aos terreiros de candomblé. “João da Goméia demonstrou que o candomblecista não está isolado do mundo, mas que também faz parte da sociedade, como intelectual, artista ou mesmo como autoridade”, conclui Bezerra. Informações, Jornal da USP / João da Goméia (1914-1971), o “rei do candomblé” – Foto: Reprodução/Youtube

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