Atley Reis de Souza, de 21 anos, egresso da rede pública de ensino na cidade de Sátiro Dias, localizado a cerca de 150 quilômetros de Salvador, ficou surpreso ao descobrir que foi uma das 28 notas mil na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020.

O jovem, que enfrentava problemas emocionais, Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e Transtorno do Estresse Pós-traumático (TEPT), encontrou no tema da redação: “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”, a oportunidade para falar sobre uma realidade que ele conhecia.

“A primeira coisa que eu fiz foi ver o tema da redação, porque antigamente ficava no fim da prova e agora fica no meio. Quando eu abri e vi o tema, eu comecei a me arrepiar todinho, porque eu ia falar da minha realidade”, disse o jovem.


Em entrevista ao site, Atley Reis contou que o tema foi a "coisa mais íntima" que ele poderia tratar na redação, por morar em uma cidade pequena e saber o que é ser estereotipado algumas vezes.


“Eu moro em um ‘interiorzinho’ da Bahia. Sátiro Dias é uma das menores cidades da Bahia, e falar de estigma, de estereótipos de quem sofre problema mentais e emocionais é a coisa mais íntima que eu podia falar naquele momento, mais segura, era sobre mim mesmo”, contou.


 “Eu estava fazendo tratamento de transtorno de ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático. Aqui as pessoas vão vítimas de estigmas, por ser uma cidade muito pequena”.


Remédios para ansiedade no dia da prova

Momentos antes de começar a prova, Atley abriu a mochila para pegar uma garrafa de água e foi esbarrado por um colega de sala. Ele lembra que algumas cartelas de remédio para depressão caíram no chão e o deixou intimidado.


“Antes de fazer a prova, eu sem querer fui abrir a mochila para pegar uma garrafinha de água e um amigo falou: O que é isso aí?’ Aí derrubou no chão e caiu algumas cartelas de remédio diazepam, o famoso rivotril e eu falei: 'Não é nada’. Eu fiquei morto de vergonha”, contou.


Durante o exame, ele contou que também pediu para ir ao banheiro e fazer o uso do medicamento, já que estava com a ansiedade alta.


“Eu pedi para ir no banheiro, não falei que eu ia tomar o remédio. Até porque eu tinha colocado o remédio dentro do bolso. Todo o material, chave, celular, fica lacrado, aí se eu colocasse lá eu não ia poder abrir no meio da prova para tomar o meu remédio. Aí eu fui no banheiro e lá fiz a administração do remédio”, afirmou Atley.


“O remédio não era administrado naquele horário, eu tomei por causa da ansiedade. O remédio é pela manhã, depois do café e depois do jantar, mas eu tomei a medicação para diminuir ansiedade, porque estava muito alta”.


Cuidados com a avó e sonho de fazer medicina

Hoje, Atley Reis sonha em fazer medicina. No dia 29 de março, quando saiu o resultado do Enem, o baiano lembrava de um dia triste. Completava um ano de morte da avó Maria José Reis de Souza, por complicações de diabetes.


“No dia 29, aconteceu o resultado, eu falei: ‘Deus, me ajuda a lidar com esse dia, porque foi o dia que completa um ano que a minha avó faleceu’. Eu cuidei da minha avó por 12 anos”, disse.


Atley Reis lembra que a avó era uma das pessoas que mais o incentivava para que ele fizesse medicina. O desejo cresceu após ele ouvir do médico que ele precisava parar de chorar, se não ele não faria a massagem respiratória na idosa.


“Meu sonho é medicina porque a minha avó morreu nos meus braços e o médico falou: ‘Cara, se você chorar, eu não vou fazer a massagem cardíaca na sua avó’ e isso mexeu comigo, eu comecei a ter traumas de médico”.


“Já era meu sonho por eu cuidar da minha avó, só que eu sou do interior da Bahia, não tenho condições de fazer uma faculdade particular, mas eu acredito que Deus tem preparado o melhor para mim”, disse.


Maria José foi quem financiou as passagens para que o jovem viajasse para Inhambupe, município que fica próximo de Sátiro Dias, e fizesse a prova.


“Ela me dava dinheiro, ela falava: ‘Meu filho, nunca esqueça dos seus sonhos’. Ela me dava R$ 10, R$ 20, o que ela tinha para eu fazer a prova em Inhambupe, porque aqui não faz a prova, tenho que pegar dois ônibus para fazer nos dois domingos”.


'Felicidade Clandestina' e 'A vida é bela'

Na construção do texto, Atley Reis homenageou a escritora Clarice Lispector, autora da obra "Felicidade Clandestina". Ele fez uma relação entre a personagem alagoana, de 19 anos, que vive no Rio de Janeiro e sofre com problemas emocionais, com a realidade vivida por muitas pessoas com transtornos mentais.

“Então, eu falei com meu coração porque eu coloquei o título assim: ‘Felicidade Clandestina’, porque já que é para falar de felicidade, de transtorno mental. Eu acredito que quem tem problemas mentais, emocionais, autismo, transtorno de ansiedade, algo depressivo um pouco maior, vive uma felicidade clandestina”, explicou.

Outro filme citado pelo baiano foi "A Vida é Bela", que conta a história do judeu Guido e o filho Giosué, levados para um campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial, na Itália. O personagem principal trata a situação como uma brincadeira, para que o filho não ficasse com medo.

“Falei sobre o filme 'A Vida é Bela', um filme que ganhou o Oscar. Ele fala do holocausto, de um pai que finge que as coisas que acontecem é uma brincadeira para o filho. Acontece toda a guerra na Itália e o filho acredita que é uma brincadeira. Bombas, as explosões, foi uma redação bem recheada”, relatou o jovem.


'Padre Fábio de Melo'



Em outra parte do texto, o baiano citou um dos ídolos, o Padre Fábio de melo, que revelou ter tido síndrome do pânico, em 2017.


“Eu escrevi com meu coração, eu falei inclusive do Padre Fábio de Melo, que eu sou muito fã dele, porque eu comentava: ‘se um padre, ele se esconde debaixo da cama, um homem daquele tamanho, debaixo da cama, com medo, com a síndrome do pânico, imagina eu de tão frágil que eu sou”, disse.

A estratégia adotada foi relacionada, segundo o baiano, de personalidades que vivem ou viveram situações parecidas mostrarem que qualquer pessoa pode desenvolver transtornos psicológicos.

“Aí eu citei, falei a importância de personalidades públicas terem esse posicionamento, porque isso diminui o estigma, porque mostra que pessoas públicas, pessoas famosas, elas também têm a possibilidade de desenvolver transtornos emocionais. Quando isso é colocado em xeque, publicamente isso acaba corroborando com a diminuição do estigma por parte da sociedade”.


Soletrando

O talento e gosto de Atley Reis pela escrita foi desenvolvido durante os anos. Ele começou a aprender as letras com três anos e chegou a participar da seletiva regional do "Soletrando", um dos quadros que fizeram sucesso no programa "Caldeirão do Huck", da TV Globo.


O jovem, com 11 anos, foi escolhido para representar Sátiro Dias, mas não venceu a etapa em Salvador, quando enfrentou outras crianças de todo o estado.


“Eu fui para Salvador, para o Soletrando 2012. Era uma quantidade muito grande de alunos, de todos os lugares da Bahia e para mim foi um máximo na minha vida. Eu não cheguei a ganhar, porque só um aluno ganharia por estado, mas assim, eu tinha muita vontade de conhecer o Luciano Huck na época. Eu era criança e toda palavra que eu via, minha mente queria soletrar, mas aí eu entendi depois que perder faz parte”.


Rendimento nas outras disciplinas

Com nota mil na redação, Atley Reis não teve um desempenho bom nas outras matérias. O jovem afirma que não sabe o que aconteceu. Ele fez o Enem em 2018 e 2019 e não teve o desempenho baixo como o desse ano.


“As minhas notas foram bem baixas, agora eu te digo, essa foi a primeira vez que minhas notas caíram. Eu sempre tirava setecentos e pouco em linguagens, acertava 42 de 45, mas não sei o que aconteceu. A redação, tirei 980 nas duas últimas e mil nessa”.


Atley Reis contou que não teve mais episódios de ansiedade e tristeza após a realização do exame. A medicação que ele toma também foi reduzida.


“Desde a redação do Enem, eu não lembro de ter tido algum episódio de ansiedade, tristeza, pânico eu nunca tive. Às vezes é necessário sair meia-noite para a casa do meu avô que também tem diabetes, quando ele fala que está sentindo tontura e eu não tenho medo”, contou.


O jovem enxerga que a doença foi um "acontecimento que não veio para ficar", "como se fosse um ciclo", que segundo ele, parece ter acabado.


“Eu entendi que na verdade foi um acontecimento que não veio para ficar, foi uma coisa ruim que não veio pra ficar, foi necessário por causa dos traumas que eu vivenciei, que eu sofri, mas é como se fosse um ciclo. Vai se fechar esse ciclo eu fazendo a redação sobre transtornos emocionais no Enem e depois tomando remédio. Aí quando eu vi o resultado eu não precisei mais do remédio”. Informações, G1 / Foto arquivo pessoal / Foto divulgação

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