Dez dias depois de Joe Biden ver seu nome confirmado como o próximo presidente dos EUA, é a vez de seu ex-chefe, Barack Obama, roubar a cena. Nesta terça (17), dia do lançamento mundial de “Uma Terra Prometida” (Companhia das Letras), detalhes do primeiro volume de suas memórias na Casa Branca tomaram o mundo.
A Folha enviou nove
blocos de perguntas (com 12 questões no total) por escrito ao democrata no dia
5 de novembro. Ele se comprometeu a responder ao menos cinco delas e pediu que
todas fossem ancoradas no livro, condições aceitas pelo jornal.
Na segunda (16) à noite, chegaram suas
respostas.
O sr. escreve na apresentação de seu
livro que a democracia em seu país parece estar à beira do precipício —uma crise
enraizada no embate entre duas visões opostas do que são os EUA e do que
deveriam ser. O sr. acha que, pelos acontecimentos de hoje [5/11], com a
vitória de seu ex-vice-presidente, o precipício fica mais longe? Você
tem razão: a divisão entre o que a América é e o que a América deveria ser é um
tema importante no livro, mas também existe outro conjunto concorrente de
visões para nosso país. Há uma visão mais inclusiva e uma visão mais tribal. As
duas interagem constantemente, e assistimos a essa interação acontecendo não
apenas nos últimos quatro anos, nem nos oito anos que os antecederam, mas ao
longo de nossa história. A pergunta permanece: quem vai vencer essa disputa de
ideias?
Tenho fé em que a visão generosa e
acolhedora do nosso país sairá por cima. E conservei meu otimismo, mesmo ao
longo dos últimos quatro anos. Porque, ao mesmo tempo em que vimos nossos
piores impulsos revelados, também testemunhamos o que podemos ser quando
mostramos nosso lado melhor, quando americanos saíram às ruas em número sem
precedente para protestar contra a separação de famílias, a violência armada, a
brutalidade policial e mais.
É isso que me dá esperança especial
em relação à próxima geração. Sua convicção do valor igual de todas as pessoas
é inata, natural. Para Malia, Sasha [suas filhas de 22 e 19 anos,
respectivamente], e seus amigos, nossas diferenças são algo a ser festejado.
Para eles, isso é evidente.
Este livro é sobretudo para esses
jovens. É um convite para mais uma vez reformarem o mundo e, com trabalho
árduo, determinação e uma grande dose de imaginação, criarem uma América que
finalmente se alinhe com o que existe de melhor dentro de nós.
O sr. descreve com detalhes o
processo que o levou a escolher Joe Biden para ser seu vice-presidente.
Dezenove anos mais velho que o sr., não parecia um candidato natural a
concorrer a sua sucessão em 2016, tanto que não foi —Hillary Clinton
foi a escolhida. O sr. antevia então, no momento de sua escolha para vice, que
ele um dia viria a ser presidente dos EUA? Admito: quando comecei
minha busca por um vice-presidente, eu não fazia ideia que acabaria por
encontrar um irmão. Joe e eu não temos muito em comum, à primeira vista. Temos
origens diferentes, somos de gerações distintas. Mas em muito pouco tempo
comecei a admirar sua resiliência, sua empatia e seu engajamento em tratar cada
pessoa que ele encontra com respeito e dignidade. Joe vive segundo o preceito
que seus pais lhe ensinaram: “Ninguém é melhor que você, Joe, mas você não é
melhor que ninguém”.
Essa empatia, essa honradez, a crença
de que todos têm valor —isso é quem Joe é. E foi por isso que durante oito anos
eu quis que ele fosse o último na sala comigo sempre que eu precisava tomar uma
decisão importante.
Ele me fez um presidente melhor. E
sei que ele nos tornará um país melhor.
Numa passagem interessante, o sr.
descreve o efeito do envolvimento da ex-primeira-dama Michelle Obama numa
escola de ensino médio para meninas em Londres. Segundo estudos de um economista,
após as visitas, as meninas melhoraram seu desempenho escolar. O sr. nunca a
encorajou a seguir carreira política? Nunca discutiram isso a sério, como uma
possibilidade de segundo ato para ela? Bem, não, porque isso não vai
acontecer. Michelle já deixou isso muito claro. Mas não direi que me surpreendi
ao ver que um estudo confirma a ideia de que a presença dela inspira as pessoas
a realizar seu potencial. Porque convivo com os benefícios disso desde que ela
e eu nos conhecemos, mais de três décadas atrás.
Como mostra o livro, não há dúvida de
que Michelle não apenas me fez um presidente melhor, mas também uma pessoa
melhor. Não há ninguém mais brilhante que ela, ninguém mais divertido, ninguém
mais sábio. Há uma razão por que tantas pessoas gravitam em direção a Michelle.
(E há uma razão por que, não importa quantas vezes ela diga não, as pessoas não
param de perguntar se ela vai se candidatar a um cargo político algum dia!)
O sr. narra uma visita a uma das
favelas no Rio de Janeiro e conjectura sobre o efeito que pode ter tido nos
meninos e meninas negras que o observavam de suas casas num país de racismo
profundamente enraizado, ainda que com frequência negado. Não muitos anos
depois, o movimento
Black Lives Matter explodiu nos EUA, com reflexos no mundo
inteiro, inclusive no Brasil. O sr. anteviu que a tensão racial desaguaria num
movimento desse tipo? Teria feito algo diferente nesta questão durante seu
mandato? O racismo está entre nós desde muito antes mesmo de sermos um país, e
nunca tive qualquer ilusão de que minha Presidência pudesse de alguma maneira
tornar nosso país pós-racista. Eu esperava que ela pudesse inspirar crianças,
quer fossem crianças das favelas na periferia do Rio ou crianças do South Side
de Chicago, mas também sabia que elas precisavam de mais do que apenas
inspiração. Elas precisam de escolas e habitação de boa qualidade, ar e água
limpos, empregos quando se formam, e mais.
E, embora tenhamos feito progresso
sobre muitos desses pontos, também é fato que, se você analisar a luta pela
justiça ao longo de nossa história, ela tende a avançar dois passos e então
retroceder um, algo que vivenciamos mais uma vez nos últimos anos.
Mas acredito que estamos indo no rumo
certo. E sei que a resposta vai vir desses jovens, cujo ativismo no verão deste
ano não poderia ter sido mais importante.
Sinto orgulho enorme do engajamento
deles com a desobediência civil. Porque, ao longo de nossa história, o protesto
pacífico e o ativismo resoluto têm sido a única maneira de fazer o sistema
político prestar atenção às comunidades marginalizadas. E espero que elas usem
esta oportunidade, com os olhos do mundo voltados a elas, para traduzir seu
ativismo em leis e política públicas que precisamos para construir um país mais
inclusivo.
O sr. descreve seu encontro com o
ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, dizendo que a visita dele
ao Salão Oval causou boa impressão. Depois, ao falar dos Brics numa reunião do
G20 em Londres, o sr. o elogia e a seus programas sociais, mas escreve:
“Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão de Tammany Hall [uma
organização política nova-iorquina da virada do século 18 para 19 associada a
corrupção e abuso do poder], e circulavam boatos de clientelismo governamental,
negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”. Qual Lula
sobreviveu em sua memória? Aquele que o sr. um dia disse “Ele é o cara!” ou o
“chefão”? Minhas interações com Lula aconteceram na maioria anos antes de seus
problemas com a Justiça, de modo que minhas recordações dele são moldadas pelo
tempo em que ele era uma presença dominante na política brasileira e uma figura
influente no palco mundial.
O que ficou claro para mim era que
ele e Dilma simbolizavam algo importante para muitos brasileiros —a ideia de
que eles estavam representados nos mais altos níveis do governo e que o governo
seguia políticas que beneficiavam as massas maiores de pessoas. Não há como
negar o dom que Lula possuía de se conectar com as pessoas e o progresso que
foi feito nesse período para tirar pessoas da pobreza.
Mas, como escrevi, sempre havia
rumores girando em torno dele sobre clientelismo, e está claro que o Brasil
ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica.
Minha esperança é que o trauma
político recente possa levar a um tipo diferente de política e que uma nova
geração de brasileiros possa liderar nesse caminho. Fonte: Folha de São Paulo /