Em 2014, o professor Sílvio Carvalho falou do centenário Joãozinho da Goméia. Nesta publicação, Sílvio fala da importância de Joaozinho da Gomeia ter sido homenageado pelo Escola de Sambra Grande Rio.  

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Assisti, com muita emoção, a todo o desfile da Escola de Samba Grande Rio. Foi bonito a Marquês de Sapucaí, na noite de domingo para segunda (23-24/02/2020), transformar-se na nova Goméia e se deixar ser invadida pelo canto caboclo do Pedra Preta, do Tata Londirá. Sem dúvida, um espetáculo de luxo, cor, arte, beleza, alegria e muita fé, como gostaria o próprio homenageado, o inhambupense Joãozinho da Goméia. Ver daqui, de Portugal, o nome de Inhambupe ser levado para o mundo, através da história do mais autêntico e reverenciado dos seus filhos, João Alves Torres, é teste para cardíaco. É impossível um inhambupense, que anonimamente deseja o bem melhor para a sua terra, não se emocionar.

Foi comovente a Grande Rio abrir o desfile coreografando os dramas vividos por Joãozinho na sua infância e juventude. Logo após o carro Abre Alas, surge o primeiro grupo performático: Noites de Inhambupe. Nova emoção, pois ali não se tratava daquelas noites marcadas pela brisa e pela beleza silenciosa que imperam sobre a praça da matriz, entre os meses de outubro e abril, depois que as janelas das casas deixam de ser olhos e ouvidos atentos à vida cotidiana da cidade. Não. Aqueles personagens que compunham a ala das Noites de Inhambupe falavam das angústias e do sofrimento de uma criança que tinha visões e dores. Visões de caboclos que surgiam para lhe anunciar a missão religiosa. E como desconhecia a sua mediunidade, o menino sofria com fortes dores de cabeça. A igreja local, onde João foi coroinha e assumiu o Canto da Verônica, não sabia ler o destino do seu fiel, fechada que estava em seus próprios dogmas. O jeito, então, foi partir para a capital em busca de tratamento.

E foi no terreiro que ele encontrou respostas e curas. Em pouco tempo, o menino inhambupense tornou-se Joãozinho da Goméia, o Rei do Candomblé. Um rei polêmico, multifacetado e corajoso, que traz para a cena da religião afro-descendente o caboclo, representação do indígena brasileiro. E é assim que ele ganha mundo. Como diz o próprio samba enredo: "O rito mestiço que sai da Bahia / E leva meu pai mandingueiro / Baixar no terreiro quilombo Caxias". Essa é, para mim, a parte mais importante da sua história. Joãozinho, com a sua coragem e inteligência, assume no seu corpo, na sua religiosidade e na sua arte a própria miscigenação brasileira. O resto é história.

Mas, qual a importância da homenagem feita pela Grande Rio a Joãozinho da Goméia? A principal, na minha opinião, foi trazer a público a questão da intolerância religiosa. Na sua época, João enfrentou essa intolerância com força e coragem. Os versos do samba enredo, "Pelo amor de Deus / pelo amor que há na fé / Eu respeito o seu amém / Você respeita o meu axé", poderiam ter sido cantado por ele próprio. Nesse momento tão delicado em que vive o Brasil, respeito é palavra cara, certamente a que mais precisamos por em prática. Por outro lado, orgulha-me ver uma escola de samba nos ensinar que respeito é fundamental e que, embora perseguida, como foram o candomblé e o próprio Joãozinho, a arte popular brasileira, em especial o samba, continua a ser o nosso meio de resistência, de produzir memória e identidade, de sensibilização. Viva o samba do Brasil!

Há outro motivo que considero importante, mas que diz respeito diretamente a nós inhambupenses. Apesar da fama, de ter sempre honrado as suas origens, de ter sido tão generoso com muitos dos seus conterrâneos, ajudando-os de toda forma, Joãozinho da Goméia é desconhecido e desprestigiado em sua própria terra. Há um silenciamento de Inhambupe sobre a memória desse seu filho. Os jovens não o conhecem; os mais velhos, em grande parte, não souberam reconhecer o seu valor de artista, de líder religioso e, principalmente, de ativista; as autoridades, por razões que não ouso aqui destacar, omitem-se. Mas a força de Joãozinho transcende a tudo isso, pois é ele, o desconhecido, que faz a sua terra ser conhecida mundo afora.

Espero que, agora, depois de a Grande Rio, através da transmissão da Rede Globo, ter levado para o mundo o nome do Rei do Candomblé, consequentemente o da nossa terra, os meus conterrâneos comecem a reconhecer que João Alves Torres é, sem dúvida, o seu irmão mais ilustre, mais conhecido, mais reverenciado e que assim se tornou porque, corajosamente até a sua morte, no início dos anos 70, se assumiu babalorixá, negro, artista, homossexual, caboclo e inhambupense.

Por Sílvio Carvalho,
Sílvio é inhambupense, professor da UNEB, doutor em Artes Cênicas e artista. / Arquivo RL News

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