Não
foi no século passado nem é delírio de uma sociedade futurista e utópica. Foi
outro dia, em 2009, quando, em um evento em Minas Gerais, a então ministra da
Casa Civil, Dilma Rousseff, manifestou, durante entrevista, a sua admiração
pelo então governador do estado, para ela “um dos melhores do país”. O
governador era Aécio Neves.
No
mesmo ano, o tucano diria que a ministra, se fosse candidata a presidente em
2010, seria “garantia de uma campanha de altíssimo nível”. “É um privilégio
para o Brasil ter alguém da sua qualidade disputando eleições.”
Dilma
e Aécio eram lideranças ascendentes em seus partidos, PT e PSDB, protagonistas
das eleições presidenciais desde 1994. Eles voltariam a trocar elogios em
público em outras oportunidades, como quando a ministra, já favorita para
disputar a Presidência, agradeceu a recepção calorosa em nova visita a Minas e
citou Aécio como parceiro “exemplar e republicano” do governo federal.
A
campanha de 2010 não foi de “altíssimo nível” como previa o governador, mas as
coisas pareciam encaminhadas. Dilma foi eleita e se tornou a primeira mulher a
abrir a Assembleia Geral da ONU. Eleito senador, Aécio fez seu sucessor no
estado e se consolidou como a grande liderança tucana de sua geração,
cacifando-se para disputar a Presidência em 2014.
O
fim da história todo mundo sabe: troca de ofensas nada exemplares nem
republicanas quando os dois se enfrentaram na eleição, polarização levada às
últimas consequências pelos marqueteiros das campanhas, crise econômica
mordendo calcanhares e a Lava Jato espirrando sujeira no olho de petistas,
tucanos e sebastianistas.
O
que vimos, em 2014, foi o início da ruína de um projeto de país baseado numa
ilusão: a de que, guardadas as diferenças programáticas, os dois principais
partidos garantiriam uma certa estabilidade nos pontos em que concordavam.
A
cena seguinte daquela campanha marcada pela virulência foi um país rachado, sem
que um dos lados estivesse disposto a ceder. A viabilidade de governar entre
tantas feridas estava bloqueada não apenas pela incapacidade de responder à
crise, mas também por interesses e disposições de adversários em trancar o
jogo, minar o terreno com pautas-bomba, desestabilizar, assumir os rumos e
estancar a sangria, com Supremo, com tudo.
Dilma
ficou marcada pela incapacidade de evitar a ruína econômica, destituída do
posto, agora que bate-boca com diretor de série de Netflix por discordar de uma
ficção baseada em fatos reais. Aécio é o senador rejeitado que pediu dinheiro
para dono de frigorífico e avisou que é melhor mandar matar antes de um primo
fazer a delação. Como previu um outro delator, foi o primeiro a ser comido.
Quatro
anos depois daquela eleição, o cenário é de terra arrasada. Com os dois
partidos na lona, quem ganhou terreno é quem se aproveita da desilusão alheia
para propor soluções simplistas para problemas complexos. Basta prender, bater,
arrebentar, criminalizar índios e sem-terra, abolir “privilégios” de minorias
(o “privilégio”, no caso, de serem os grupos vítimas preferenciais da violência
e da exclusão), armar os “cidadãos de bem” e tudo voltará à ordem. Conversa.
Mas uma conversa que ganha voto e pode dar forma, se é que já não deu, a um
modelo à brasileira de fundamentalismo.
Pulando
nas sobras das duas legendas, o presidente em exercício é uma figura
fragilizada, que terceirizou a gestão até da segurança no estado onde os
colegas de partido, como um ex-governador, um ex-presidente da Assembleia
Legislativa e um ex-presidente da Câmara, estão emparedados, condenados ou
presos.
Lula,
hoje, é sombra do presidente que deixou o Planalto com 80% de aprovação e
pavimentou o caminho para a sucessora. Denunciado e condenado, é alvo não
apenas da antipatia de quem se desiludiu e de quem jamais o aceitou e não quer
vê-lo em campanha antecipada na véspera da confirmação de sua condenação. É
alvo de pedras e ovos, como foi alvo de ovos o futuro ex-prefeito de São Paulo
quando imaginou ser o futuro candidato a presidente do PSDB, para aplausos de
muitos.
Não
se trata de rebater discursos, mas de não permitir sequer que eles aconteçam,
sob a ordem de meninos imberbes que propagam notícias falsas e têm na
virulência o que lhes falta de índole e inteligência.
Alguma
coisa se quebrou de 2014 para cá, e não foram apenas ovos. Essa tensão pode ser
observada na troca diária de ofensas e infantilidades entre congressistas e até
no bate-boca entre ministros do Supremo Tribunal Federal, onde um colega acusa
o outro de fazer “dois e um” para propósitos estranhos e ouve que é “pessoa
horrível” e desonra o convívio na mais alta Corte.
No
Brasil de 2018 a intransigência virou figura de linguagem, e não há sinal de
estabelecimento de comunicação ou resgate da estrutura daquele desenho de país,
“exemplar e republicano”, que em menos de dez anos se revelou uma miragem.[Informações do yahoo]