Apareceu um
estranho argumento estatístico no mais atual debate jurídico do país, aquele
que gira em torno da preservação do artigo 5, incisivo LVII da Constituição,
que diz que “nenhuma pessoa será considerada culpada até o transito em julgado
de sentença penal condenatória”.
Como nós sabemos,
essa garantia foi suspensa pelo STF em 2016, numa votação apertada de 6 a 5,
logo depois da derrubada de Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade,
quando a força política da Lava Jato se encontrava no auge.
O debate tem uma
importância óbvia no Brasil de 2018. O trânsito em julgado pode ser o último
recurso jurídico para evitar a prisão de Lula por 12 anos, sem prova de crime,
e garantir sua presença na campanha presidencial na qual aparece como o
candidato em primeiro lugar em todas as pesquisas.
Assinado por Luís
Roberto Barroso, do STF, e Rogério Schietti, do STJ, com base num
levantamento da Coordenadoria de Gestão de Informação do STJ, o artigo
“Execução Penal, opinião e fatos, “ defende a noção de que a preservação do
trânsito em julgado atinge a situação de uma parcela estaticamente minúscula de
condenados, pouco mais de 1%. Mesmo sem dizer de forma explícita, este é
o principal argumento para preservar o cumprimento da condenação em segunda
instância.
O sujeito oculto
do debate é Lula e seu destino.
A função política
do artigo é respaldar a presidente do STF Carmen Lúcia, que lançou a
jurisprudência do “apequenar” para evitar uma discussão necessária, até porque
há sinais claros de que se formou uma nova maioria na corte mais alta do país,
favorável a uma nova decisão, favorável ao transito em julgado. Mas os dois
ministros preferem discutir números.
“A soma dos
percentuais de absolvição e de substituição de pena é de 1, 64%”, escrevem,
para sublinhar com isso o baixo “impacto sobre a liberdade dos condenados.”
Para os dois autores, “é ilógico moldar o sistema em função da exceção e não da
regra”. Concluindo: reestabelecer o trânsito em julgado “traz pouco benefício
para a Justiça”.
Na conclusão,
Barroso e Schietti deixam o campo matemático para defender a prisão a partir da
segunda instância, com o argumento clássico de que o transito em julgado
representa “grande incentivo à corrupção”. Sabemos qual o sentido dessa
referência. Melhor voltar à matemática.
A mesma
estatística que usa o cálculo de 1,64% para evitar um debate que envolve não só
um candidato com 37% das intenções de voto, mas milhares de outros condenados
na mesma situação, permite questionar uma estatística básica.
Estamos falando
do questionável direito de onze ministros STF, escolhidos em épocas diferentes
por cidadãos diferentes que ocupavam a presidência da República, fazerem uma
mudança na carta maior, votada em dois turnos por um Congresso Constituinte
escolhido pelo voto popular em 1986.
A estatística é
assim: um total de 69 milhões de brasileiros foram às urnas em 1986 para
escolher senadores e deputados federais que escreveram e votaram a
Constituição. Enquanto isso, o plenário de que em 2016 derrubou o trânsito em
julgado representa um punhadinho de 11 votos, 6 milhões de vezes menor que o
total de eleitores que deram origem ao inciso LVII do artigo 5. Se computarmos
apenas os 6 ministros que em 2016 aprovaram a decisão por uma vantagem de 1
votos, estamos falando de um universo 10 milhões de vezes menor.
A exemplo do
1,64% de Barroso-Schietti, estes números não resolvem uma discussão jurídica.
Mas demonstram o caráter absurdo de se empregar estatísticas num debate que
envolve problemas fundamentais da existência humana, a começar pelo
respeito à liberdade como o valor maior de nossa existência – depois da própria
vida.
Essas comparações
também ajudam a lembrar que as estatísticas podem ser muito úteis para se
conhecer a realidade de um país ou a consistência de um argumento teórico – mas
também para iludir e enganar. “Como mentir com estatísticas” é uma obra
clássica da sociologia norte-americana, que desde a década de 1950 alerta para
o risco de confiar-se num recurso que tanto serve para esclarecer como para
confundir.
No Brasil, onde
720 000 pessoas eram mantidas em regime de encarceramento no momento do
levantamento, a visão de que uma percentagem de 1,64% pode ser insignificante é
relativa demais para servir de critério para qualquer decisão. Envolve 11 000
pessoas e, só para ter uma ideia do que isso significa, tentei descobrir
quantas cidades brasileiras tem esse tamanho. Parei na letra A do Censo, quando
esse número chegava a 103 cidades com até 10 000 habitantes. Poderíamos
perguntar quantas empresas. Quantas universidades.
O argumento
estatístico é inaceitável, essencialmente, porque o Estado Democrático de
Direito envolve os direitos de cada indivíduo perante o Estado.
Essa condição, em
matéria penal, não pode ser reduzida a um número, a menos que se pretenda
abandonar de vez a democracia na qual escolhemos viver, pois cria uma situação
só compatível com ditaduras especialmente cruéis. Sim: estou falando daqueles
regimes nos quais os cidadãos deixam de ter nome, filiação, residência, para se
transformar num número, às vezes tatuado no braço, ficando a disposição do
Estado para todo tipo de abuso e crueldade. Só nessas ditaduras os direitos são
reduzidos a números, porque antes isso já aconteceu com as próprias
pessoas.
A história da
justiça brasileira ensina que, em determinados momentos, o destino de um
pequeno número de pessoas – ou de uma só pessoa – está no centro de decisões
particularmente relevantes nesse terreno. Nem vamos falar de Tiradentes, marco
da justiça colonial, enforcado e esquartejado sob encomenda da Coroa,
interessada em criar um exemplo contra os cidadãos que lutavam pela
independência contra a Metrópole. Quantos 0,0000% Tiradentes representou na
jurisprudência do Brasil-colonia?
Há outros casos
significativos, que ajudaram o país a avançar em direção a uma existência
civilizada. A pena de morte foi abolida por Pedro II e nunca mais foi aplicada
no país depois que se comprovou que Manoel da Motta Coqueiro, enforcado em
1855, perdeu a vida com base num erro judicial. Fazendeiro rico e influente,
Coqueiro chegou a pedir indulto ao Imperador. Mas a falha do julgamento se
comprovou quando era tarde demais. Arrependido, o Imperador decidiu
indultar os condenados que aguardavam o caminho da forca, inaugurando uma
tradição humanitária que o país conserva até hoje.
Deu para entender
o debate em fevereiro de 2018?|brasil247