
Em alguns casos, especialmente nas áreas rurais, moradores chegam a andar mais de 100 quilômetros para conseguir registrar um boletim de ocorrência, tirar o RG ou mudar a documentação do carro. Sem pessoal suficiente para investigar, crimes ficam sem solução e inquéritos se acumulam. A falta de policiais também traz uma série de problemas para os próprios delegados, que são obrigados a acumular mais de um posto, sem receber mais para isso, e a percorrer centenas de quilômetros para acompanhar ocorrências.
Os governos estaduais argumentam que
algumas dessas cidades estão sem responsável pela Polícia Civil porque são
muito pequenas. Afirmam que tentam organizar a distribuição dos profissionais
de acordo com as regiões. Em pelo menos dois estados, Pernambuco e São Paulo,
delegados relataram que a falta de investigação nas cidades pequenas levou
grupos criminosos a apostarem em roubos a caixas eletrônicos.
Minas Gerais é o estado com mais cidades
sem delegado, entre as que responderam. Dos 853 municípios mineiros, 607 não
têm delegado, de acordo com o sindicato da categoria. Ao contrário de outros
estados, que possuem institutos responsáveis pela emissão do RG e de documentos
de veículos, em Minas o documento é impresso na delegacia. Quando não encontra
um delegado, o morador precisa ir a outra cidade.
DELEGADO 'TENTA' APURAR EM CINCO
CIDADES
Responsável por três cidades a cerca de
310 quilômetros de Belo Horizonte, o delegado Henrique Franco fica a maior
parte do tempo em Pirapora, onde está a delegacia regional, a cerca de uma hora
de viagem dos outros dois municípios que atende.
— É uma área de grande extensão territorial, com muita zona rural. Tenho que me dedicar ao plantão em Pirapora e chego a ficar só uma semana, por mês, em Várzea da Palma — diz Franco, que ilustra a situação: — Meu chefe cuida de São Romão e precisa pegar rodovia, estrada de terra e até balsa. De duas a três horas de viagem, dependendo do dia.
A Polícia Civil de Minas Gerais
informou que não divulga o efetivo por questões de segurança e que
"realiza de forma técnica realocações em seu quadro de pessoal, tendo
sempre o objetivo de melhor atender as demandas necessárias e a população”.
Recentemente, foram contratados investigadores, peritos e legistas. Segundo a
polícia, nenhum município de está “sem o devido atendimento".
O delegado Murilo Gonçalves, de 31
anos, está há 4 anos na Polícia Civil de Goiás e já pensa em deixar a
corporação. Há dois meses, Gonçalves tenta investigar os crimes cometidos em
cinco cidades do estado. Lotado em Jussara, a 230 quilômetros de Goiânia, ele
também é responsável por Fazenda Nova, Novo Brasil, Santa Fé e Britânia — essa
última ele não conseguiu visitar nos últimos dois meses.
— Faz dois meses que assumi essas
cidades e ainda não consegui visitar Britânia, que fica a uns 100 quilômetros
de Jussara, não sobrou tempo. Não tem nem motorista, na maioria das vezes eu
vou dirigindo. Já pensei em largar tudo e prestar concurso pra outra carreira,
mas falta tempo até pra estudar — diz.
Dos 246 municípios de Goiás, 162 não
têm delegados e o déficit atual, segundo a assessoria da Polícia Civil, é de
193 profissionais. A presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil de
Goiás, Silvana Nunes Ferreira, atesta o desânimo da categoria e afirma que o
índice de desistência da profissão gira em torno de 25%. A Secretaria de
Segurança Pública de Goiás não respondeu.
DÉFICIT DE 6 MIL DELEGADOS NO PAÍS
No Ceará, o delegado Carlos Eduardo
Silva de Assis, titular da delegacia de Jaguaribe, tem se deslocado tanto entre
uma cidade e outra que O GLOBO não conseguiu localizá-lo no posto policial na
tarde de 14 de dezembro. Assis atende mais sete municípios. Por telefone, a
secretária da delegacia de Jaguaribe informou que, naquele dia, o delegado
estava em oitivas desde às 8h e só terminaria o trabalho do dia às 22h.
— Tem que ficar de uma cidade pra
outra, 50 quilômetros aqui, 40 quilômetros ali — diz Assis.
O delegado Josel Dantas, diretor da
Associação dos Delegados de Polícia do Ceará, diz que não há delegados em 86
municípios dos 184 do estado.
— Isso aí prejudica o atendimento
porque a população deixa de registrar ocorrência. Quando o crime acontece, o
delegado chega bem depois ao local e tem dificuldade até para encontrar
testemunhas para ouvir depoimento.
O governador do Ceará, Camilo Santana
(PT), anunciou em novembro último a convocação de 476 inspetores e 201
escrivães, todos aprovados no último concurso realizado em 2015.
Em nota, a Secretária da Segurança
Pública e Defesa Social do Ceará afirmou que "é incorreta a informação de
que um delegado chegue a responder por oito delegacias" e informou um
número menor de cidades sem distritos policiais. A pasta disse que "nas 62
cidades que não possuem unidades fixas da Polícia Civil, as demandas são
atendidas por delegacias regionais e municipais próximas".
A necessidade de se deslocar por
estradas para atender ocorrências, extrapolando o horário da jornada de
trabalho provocou uma situação trágica em São Paulo. Em 30 de março de 2017, o
delegado Davi Ferreira da Rocha morreu em um acidente de trânsito quando se
deslocava para atender um plantão entre São José do Rio Preto e Fernandópolis,
cidades distantes 116 quilômetros. Sem motorista, ele mesmo dirigia a viatura
que bateu na traseira de um caminhão na estrada.
— O delegado fica 24 horas de
sobreaviso, desrespeitando todas as normas internacionais de trabalho. O
governo tem que ser cobrado por situações como essa — diz Raquel Kobashi
Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São
Paulo.
A Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo informou que "todas as cidades contam com delegados que
respondem pelas unidades policiais". Ainda segundo o governo paulista,
fazer um delegado cuidar de mais de um município, não traz "prejuízos às
atividades de polícia judiciária".
O presidente da Federação Nacional dos
Delegados de Polícia Civil, Rodolfo Laterza, projeta um déficit de delegados de
aproximadamente 6 mil profissionais em todo o país. Ele cita o Piauí, onde 160
delegados precisam dar conta do trabalho de 224 cidades.
No Rio, os 92 municípios estão cobertos
por 593 delegados. O presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do
estado, Rafael Sarnelli Lopes, diz que "essa (falta de delegados) não é o
maior problema" do estado, marcado pelos altos índices de violência.|oglobo