Lamentável", "vulgar" e
"promíscua". É assim que o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz
Fux classifica a decisão da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro de soltar
os deputados estaduais do PMDB Jorge Picciani (presidente da Alerj) ,Paulo Melo
e Edson Albertassi.
Suspeitos de formar uma organização
criminosa para desviar recursos públicos, eles foram presos por determinação do
Tribunal Regional Federal da 2ª Região, mas a prisão foi revogada na sexta por
decisão da maioria dos deputados estaduais do RJ.
Em entrevista exclusiva à BBC Brasil, Fux
destaca que a Alerj não poderia ter decidido sobre as prisões sem ter
consultado o Judiciário. Ele afirmou categoricamente que a soltura de deputados
estaduais por assembleias "certamente" será revista pelo Supremo.
Além do Rio de Janeiro, assembleias do Rio
Grande do Norte e do Mato Grosso usaram a decisão do STF de dar ao Senado a
palavra final sobre a suspensão do mandato do senador Aécio Neves (PSDB-MG)
para embasar a soltura de deputados estaduais.
Fux está na Inglaterra para um simpósio
sobre arbitragem, na Universidade de Oxford. Antes do evento, visitou a sede da
BBC, em Londres, para conceder a entrevista.
Ele será presidente do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) em 2018 e terá como tarefa conduzir a eleição presidencial num
momento de crise política e polarização. Na conversa com a BBC Brasil, o
ministro elogiou enfaticamente a possibilidade de o ex-ministro do STF Joaquim
Barbosa se candidatar a presidente no ano que vem.
"É uma figura que a sociedade admira
muitíssimo e eu entendo que ele seja um grande nome nesse momento que o Brasil
precisa de uma repercussão internacional de que seu dirigente é um exemplo de
moralidade e de probidade. E ele saberá montar uma equipe à altura do seu
próprio conhecimento, na medida em que ele foi um excelente presidente do
Supremo Tribunal Federal."
Fux também defendeu flexibilizar o foro
privilegiado - o julgamento do caso será retomado ainda essa semana pela Corte
- e reiterou, em referência ao ex-presidente Lula, que qualquer candidato com
condenação em segundo grau deve ser impedido de concorrer a cargo eletivo, com
base na Lei da Ficha Limpa. "O Brasil não aceita mais candidato ficha
suja", afirmou.
Lula já tem condenação em primeiro grau e
há dúvidas sobre se ele poderia se candidatar à Presidência amparado em
eventual decisão liminar (provisória), caso seja condenado, também, em segunda
instância.
BBC Brasil - O Rio de Janeiro vive uma situação
extremamente difícil. A Polícia Federal diz que havia uma organização criminosa
entre Legislativo, Executivo e Tribunal de Contas para desviar recursos
públicos. Como o senhor vê a decisão da Alerj de derrubar a prisão do
presidente da assembleia e de deputados?
Luiz Fux - Eu entendo que essa é uma
decisão lamentável decorrente de uma interpretação incorreta feita em razão da
decisão do Supremo Tribunal Federal (de dar ao Senado o poder de rever medidas
cautelares contra Aécio Neves), por 6 a 5, apertada maioria. Portanto, entendo
que a tese dessa decisão vai voltar ao plenário. Mas eles se basearam nessa
decisão para entender que os deputados estaduais têm as mesmas imunidades dos
congressistas federais. Entretanto, houve, no caso federal, uma provocação do
Judiciário. E as assembleias estaduais estão utilizando de maneira vulgar e
promíscua essa decisão do Supremo sem provocação em relação ao Judiciário. É
uma decisão lamentável, que desprestigia o Poder Judiciário, gera uma sensação
de impunidade e que certamente será revista pelo Supremo Tribunal Federal.
BBC Brasil - Então, eles não tinham esse direito
de rever a decisão (do Tribunal Regional Federal)?
Fux - No meu modo de ver, deveria ter
havido uma provocação prévia ao Poder Judiciário. O Ministério Público
inclusive já ingressou com uma ação para anular essa deliberação da Assembleia
do Rio de Janeiro.
BBC Brasil- Essas decisões (do Senado e da
Alerj) não dão a impressão de que o Judiciário é um poder fraco e que o Legislativo
pode tudo?
Fux- Constituição estabelece que, até a
denúncia, a competência é do Poder Judiciário. Então, o Poder Judiciário não
precisaria de autorização nenhuma do Congresso e das assembleias para
determinar medidas cautelares. No meu modo de ver, a decisão do Supremo é
incorreta. Ela restou proferida por uma maioria, mas na essência é uma decisão
incorreta.
BBC Brasil - O senhor vai ser presidente do
TSE na eleição de 2018. Até agora o cenário é incerto. Temos o deputado Jair
Bolsonaro despontando como candidato, o ex-presidente Lula querendo concorrer,
mas com risco de condenação em segunda instância, um PSDB sem candidato
definido e muitos investigados... Como o senhor vê esse momento e as opções que
estão surgindo?
Fux - Entendo que as eleições de 2018, em
razão das candidaturas postas, à semelhança das outras eleições, serão muito
questionadas. Quer porque os candidatos têm problemas judiciais, quer porque os
partidos têm esse veio beligerante de tentar inserir seus candidatos e excluir
os demais. O Brasil tem um sistema eleitoral muito rígido no que concerne
candidatura. Temos regras específicas de elegibilidade. O momento do registro é
capital, o candidato tem que mostrar que tem ficha limpa. E o Brasil não aceita
mais candidatos ficha suja. Não só internamente, mas também para não dar mau
exemplo no cenário internacional.
BBC Brasil - Então, se o ex-presidente
Lula tiver uma condenação em segundo grau, haveria algum argumento jurídico
para permitir que ele concorra?
Fux - Qualquer presidente, qualquer
candidatável, qualquer concorrente que tenha condenação em segunda instância
recai na Lei da Ficha Limpa. A lei tem instrumentos que eventualmente podem ser
utilizados, como as liminares suspendendo o efeito da inelegibilidade. Isso vai
ser analisado a cada caso concreto.
BBC Brasil - Outro fenômeno da sociedade
brasileira é uma rejeição da política e dos partidos tradicionais. Nesse
contexto, possíveis candidaturas de pessoas que nunca tiveram experiência com
política começam a aparecer. O apresentador Luciano Huck e o seu ex-colega de
tribunal, Joaquim Barbosa são exemplos. Qual a sua opinião sobre essa ascensão
de nomes sem bagagem política?
Fux - Entendo que a sociedade sente, em
seu interior, uma falta de representatividade adequada. De sorte que, no meu
modo de ver, haverá modificação do cenário político. Por outro lado, uma figura
emblemática que represente a ética, a moralidade e probidade hoje é a escolha
preferida do eleitor. Entretanto, essas pessoas não governam sozinhas. Essas
pessoas precisam de grandes equipes. O que estamos verificando é que esses
candidatos denominados outsiders têm apresentado equipes eficientes que já
funcionaram em governos anteriores com muita qualidade e muita eficiência.
BBC Brasil - Especificamente falando do
ex-ministro Joaquim Barbosa. O senhor acha que ele tem chance? O que o senhor
acha de juízes na política?
Fux - Em primeiro lugar, até por
força de ideologia anglo-saxônica, somos repugnantes a um governo de juízes,
até porque juízes não podem ter filiação partidária. Mas o ministro Joaquim
Barbosa não é mais juiz. É uma figura que a sociedade admira muitíssimo e eu
entendo que ele seja um grande nome nesse momento que o Brasil precisa de uma
repercussão internacional de que seu dirigente é um exemplo de moralidade e de
probidade. E ele saberá montar uma equipe à altura do seu próprio conhecimento,
na medida em que ele foi um excelente presidente do Supremo Tribunal Federal,
goza da confiança legítima do povo e tem grandes companheiros que podem formar
uma belíssima equipe para administrar o Brasil. Entendo até que basta o
ministro Joaquim Barbosa se lançar porque várias personalidades que têm
qualidade técnica para administrar o Brasil vão se apresentar para oferecer
seus serviços em prol do Brasil.
BBC Brasil - Independentemente do resultado
eleitoral em 2018, está claro que o Brasil vive um clima de divisão muito
grande. E existe um grupo que pede claramente a volta da ditadura militar. Há
riscos de retrocessos para a democracia?
Fux - Acho que a democracia no Brasil hoje
está absolutamente sedimentada. Não há possibilidade de reversão. (...) A
figura do candidato Bolsonaro significa uma reação a esse ambiente político
nocivo que estamos assistindo, mas isso não significa necessariamente que nós
vamos proceder a uma regressão do Estado Democrático de Direito que alcançamos.
Quem vier vai ter que se adaptar a esses novos princípios, a esse ideário.
BBC Brasil - Lula e Bolsonaro já estão claramente
em campanha. Lula começou a fazer caravanas e Bolsonaro divulgou vídeos. O que
o senhor acha desse clima de campanha antecipada?
Fux - A legislação em relação à propaganda
é muito flexibilizada. Ela exige que, para caracterizar propaganda antecipada,
haja pedido explícito de voto. O que é realmente um absurdo. O TSE não vai
apreciar essas questões da propaganda estritamente apegada à letra da lei.
Quando nós verificarmos que a propaganda é antecipada apesar de qualquer
dissimulação, nós vamos punir conforme a lei nos autoriza. O TSE não vai ser leniente
com qualquer ilícito eleitoral.
BBC Brasil- Na primeira instância, mais de 100
réus na Lava Jato foram condenados até agora. No Supremo, o ritmo é muito
diferente. Até agora não houve condenação. Por que essa discrepância? Não dá a
ideia de que o réu se beneficia ou, no mínimo, ganha tempo quando é julgado
pelo Supremo?
Fux- Há uma diferença importante, as
varas de primeira instância só fazem isso. São varas especializadas em crimes
de organizações criminosas. O Supremo tem jurisdição sobre todo o território
nacional e julgamentos com causas em que há questões de família, direito penal,
direito civil. O Supremo tem 70 mil processos para julgar. Uma vara de crime
organizado profere 30 sentenças por mês no máximo. Cada ministro do tem que
proferir no mínimo mil decisões por mês. De qualquer maneira, em razão da
competência do Supremo, que inclusive vai ser revista em relação ao foro
privilegiado, posso assegurar que nenhum desses casos da Lava Jato prescreverá.
BBC Brasil - É o momento de rever o foro privilegiado?
Fux - É o momento de rever o foro
privilegiado, porque os processos sobem e descem conforme o cargo exercido pelo
acusado. Então, se ele comete uma infração comum e se torna deputado o processo
sobe. Depois ele perde o mandato e o processo desce. Depois ele volta a
concorrer e o processo sobe. Esse sobe e desce acaba gerando prescrição e
sensação de impunidade. Essa regra constitucional certamente será interpretada
- já tem quase que a maioria de votos - no sentido de que só ficam no Supremo
os casos daqueles candidatos que estejam no exercício do mandato e cujo delito
tenha sido praticado durante o mandato.
BBC Brasil - Nos últimos anos, questões sensíveis
no contexto brasileiro, como aborto de fetos anencéfalos e casamento
homoafetivo, foram decididas pelo Supremo e não pelo Congresso. Aliás, tem sido
assim em vários países da América Latina. É chegado também o momento de o STF
dar a palavra final sobre descriminalização do aborto?
Fux - Eu tenho a impressão de que
algumas questões são judicializadas porque o Parlamento não quer pagar o preço
social de tomar a decisão adequada. Mas, na verdade, o lugar próprio de decidir
sobre a descriminalização do aborto é o Parlamento e não o Supremo Tribunal
Federal. O Parlamento tem mais expertise para essa solução do que o Supremo,
principalmente porque há um desacordo moral razoável na sociedade. Quem
representa a sociedade hoje, no âmbito dos poderes, é o Legislativo, que é a
casa do povo.
BBC Brasil - O que a gente vê no Congresso é um
movimento oposto. Está em discussão um projeto para proibir o aborto em todos
os casos, colocando na Constituição que a vida deve ser protegida desde a
concepção. Como fazer com essa dissonância?
Fux - Entendo que é um problema de
saúde pública que a sociedade tem que decidir por meio de seus representantes.
Agora, o Judiciário pode vir a ser provocado sobre essa questão. E então, num
momento oportuno, vou me manifestar.
BBC Brasil- E a legalização do consumo e
comércio de drogas. O senhor tem posição sobre isso?
Fux - Essa é uma questão que o Supremo
está prestes a decidir. Já tem uma sombra de que essa matéria vai ser
chancelada pelo Supremo. Pelo menos a descriminalização do uso da maconha o
Supremo vai chancelar. A questão da comercialização também é importante,
porque, segundo cientistas políticos e sociólogos afirmam, isso seria um golpe
certeiro contra o tráfico, que é uma das tragédias da nossa sociedade. Por
enquanto estamos debatendo a descriminalização do uso e posteriormente vamos
debater a possibilidade do comércio regular da droga, assim como acontece no
Uruguai e em outros países.
BBC Brasil - O governo fez mudanças nas regras
trabalhistas e propõe uma reforma na Previdência. Enquanto isso, alguns juízes
recebem supersalários e há uma gama de penduricalhos à remuneração, com
auxílio-moradia. O Judiciário não deveria dar sua contribruição ao esforço de
ajuste fiscal?
Fux - Eu acho que o Judiciário tem que
dar a sua cota de sacrifício nesse momento. No presente momento, o CNJ
(Conselho Nacional de Justiça) está fazendo uma aferição desses supersalários,
para impor cortes, ressalvando as hipóteses em que a própria lei orgânica da
magistratura estabelece indenização. A juíza gestante tem que ter o mesmo
direito das servidoras públicas gestantes. Os juízes têm que receber a mesma
coisa que os servidores. Juízes têm férias... O exemplo do Judiciário não pode
ser um exemplo que os desigualem em relação aos servidores públicos, porque
eles (juízes) também prestam serviços.
BBC Brasil - Mas e os penduricalhos, que acabam
engordando os salários?
Fux - Essas penduricalhos são
absolutamente inaceitáveis. Vai chegar o momento em que o CNJ vai cortar
totalmente esses penduricalhos. Mas às vezes são transmitidos como
penduricalhos indenizações a que os juízes fazem jus há bastante tempo e que
são pagas parceladamente.
BBC Brasil - Convencionou-se que os juízes
só falam nos autos. Hoje, no entanto, as pessoas sabem o que é o Supremo, quem
são os ministros e há transmissão em tempo real dos julgamentos. Se por um
lado, há mais transparência, por outro lado, os magistrados estão submetidos a
mais pressões, o que, eventualmente, prejudica a isenção das decisões?
Fux- O Brasil é o único país que tem TV
Justiça. Nenhum país do mundo transmite julgamento. Agora, o Supremo decide
questões subjetivas. São processos de pessoas físicas e jurídicas. E decide
questões objetivas que envolvem questões morais, de razões públicas, como da
descriminalização das drogas e aborto, o Judiciário deve ouvir a população.
Nessas questões, não pode ser dissonante daquilo que o povo espera.
BBC Brasil - Percebe-se uma divisão no Supremo.
Recentemente, houve bate-boca entre os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar
Mendes. Esses episódios não prejudicam a imagem do Supremo?
Fux- O ideal seria a Corte sempre
dialogar antes de iniciar um julgamento. O Supremo é composto por homens que
vêm de diferentes lugares do Brasil, com formações ideológicas diferentes. A
divisão ideológica nos julgamentos demonstra que cada um pretende fazer o que
entende de melhor. As desavenças são naturais, debaixo da toga bate o coração
de um homem. Cada um tem suas sensações e motivações.
BBC Brasil - Mas como o senhor vê o modo
como essas divergências estão sendo manifestadas, de forma agressiva, inclusive
com ministros questionando a ética e a moral dos colegas?
Fux - Essas manifestações são tão
esporádicas e extraordinárias que chamam a atenção, mas elas não são
corriqueiras e usuais. Cada ministro absorve para si a responsabilidade de seus
excessos.