Alunos da Ufba usam o BI de Saúde como porta de entrada para Medicina

Era para ser uma experiência educacional única. Mas para os estudantes que sonham em ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o Bacharelado Interdisciplinar (BI) de Saúde virou um calvário. Em busca do escore ideal para ter acesso ao mais desejado curso da instituição, os alunos enfrentam uma competição feroz, com impacto sobre o estado psicológico, em que as relações de coleguismo e o desenvolvimento acadêmico perderam espaço no vale-tudo pela nota mais alta.

Os relatos colhidos pelo CORREIO entre alunos do BI de Saúde evidenciam de maneira clara o desgaste emocional de quem via no curso um caminho alternativo para chegar à Faculdade de Medicina da Ufba (Famed). Quase todos apresentam quadros que vai da forte carga de estresse à depressão. Para eles, companheiros de aulas se transformaram em adversários, num ambiente em que o boicote ao outro é tratado como questão de sobrevivência.

É preciso retroceder no tempo para entender como um formato tido como revolucionário no ensino superior brasileiro ganhou nuances de guerra na batalha pelo acesso à Famed. Inspirados nos planos do escritor e educador baiano Anísio Teixeira, reitor da Universidade de Brasília quando a Ditadura foi instaurada no país, e nos modelos acadêmicos largamente adotados na Europa, os BIs foram criados na Ufba em 2009, divididos em quatro grandes áreas do conhecimento: Saúde, Humanidades, Artes e Ciência e Tecnologia.

O sistema permite ao aluno ter contato com as mais diversas disciplinas para, depois de completar os três anos de estudos, escolher o curso específico que quer seguir na universidade, de acordo com a área de afinidade do BI. Ao mesmo tempo, possibilita o ingresso à Ufba sem depender do vestibular e, posteriormente, do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Para a imensa maioria das faculdades, o modelo funciona sem grandes problemas, diferente do que ocorre em relação às mais concorridas. Especialmente, a de Medicina.

No total, são oferecidas nulamente 32 vagas na Famed para alunos oriundos do BI de Saúde. Dezesseis delas são reservadas aos cotistas; o restante, de ampla concorrência, em que as vaga são destinadas aos que somarem os mais altos coeficientes de rendimento, calculado de acordo com uma equação complexa. É exatamente nesse ponto que as coisas desandaram para os estudantes interessados na carreira de médico.

No leque das 30 disciplinas do BI de Saúde, oito são obrigatórias e oferecidas pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciência da Ufba (Ihac), com peso 2. Quatro são de outras áreas e tem peso 1. As 18 restantes são de livre escolha, sendo que as do curso específico de interesse do estudante tem peso 2,5, as de Saúde, peso 2, e dos demais campos do conhecimento, 1. Isso fez com que os estudantes trocassem a formação acadêmica pela melhor estratégia para adquirir um escore competitivo, onde vale até monitorar o colega, boicotá-lo, mentir sobre determinada disciplina.

Obsessão
Assim, tirar 10 ou perto disso virou obsessão para  os postulantes à vaga na Famed.  “A minha concepção de universidade era outra. O que para qualquer outro curso é tranquilo, para o BI de Saúde é o fim do mundo. Perder três décimos é motivo de desespero. Recentemente, uma professora brincou que todo mundo tinha tirado 7 na prova. Quem era do BI enlouqueceu. Essa professora fez essa brincadeira porque ela entende a questão do BI”, diz Ludmila, de 25 anos, que assim como os demais personagens ouvidos pela reportagem pediu para ser identificada com um nome fictício.


“É uma insegurança constante. Você nunca está satisfeito com você mesmo. Se a média é 5, levar um 8,5 é inaceitável. Você tem que estar estudando exaustivamente. Quando você tem uma nota baixa, se sente um lixo. Entenda nota baixa 8,5 ou 9”, destaca Daniel, 22 anos. “Já tomei muita ritalina (medicamento que eleva o foco e a concentração) para estudar. Já perdi muita noite por preocupação, por questão emocional mesmo, e não por estar estudando. A carga de notas altas que é necessária adoece a gente. Eu vejo amigos com problemas de saúde mental, estudantes que estão procurando psicológo. Eu estou procurando”, afirma Leandro, 28 anos.

Preconceito e Justiça
Em todos os depoimentos, são frequentes as queixas sobre um suposto preconceito dos alunos e professores da Famed com os alunos do BI de Saúde. “Medicina não abraça a causa do BI. Os professores de lá falam claramente que se tiver aluno do BI na sala vai desmatricular. Eles não querem os de BI. Há a sensação de que não é a mesma universidade. Resoluções que valem para todos os colegiados não valem para a Famed. Eles têm uma autonomia muito grande”, acrescenta Leandro.


Há casos de disciplinas específicas, as de maior peso, em que a Famed instituiu pré-requisitos que não existiam para o BI ou então efetivou a desmatrícula em decisão unilateral. O que gerou uma avalanche de ações judiciais contra a Ufba. Advogado especialista em casos relativos aos Bacharelados Interdisciplinares, Gustavo Azevedo contabiliza 40 ações judiciais movidas contra a universidade por causa de distorções no sistema. Destas, 38 resultaram em liminares favoráveis aos estudantes.

“Na maioria dos casos em que atuo, as liminares determinaram a reinserção de alunos desmatriculados da Famed sem amparo no regulamento. Há causas relativas à dupla cota, pois estudantes que entram no BI como cotistas também garantem direito à metade das vagas para Medicina”, afirma Azevedo. Para o advogado, que se aprofundou sobre os problemas vivenciados pelos clientes, a competição acirrada mudou a essência do BI de Saúde. “Você não entra para aprender, mas para tirar a melhor nota”, diz.

 Ufba busca meios de reduzir tensão no BI de Saúde
Responsável pela Pró-Reitoria de Ensino e Gradução da Ufba (Prograd), Penildon Silva Filho afirma que as dificuldades e os problemas de ordem psicológica enfrentados pelos alunos do BI de Saúde são de conhecimento da instituição. No entanto, garante que universidade vem buscando mecanismos para reduzir a pressão enfrentada pelos candidatos ao curso de Medicina.

“Sabemos da existência de uma competitividade acirrada entre os estudantes do BI de Saúde, que há alunos com quadro de estresse e depressão, mas é um caso específico dos estudantes que concorrem a uma vaga na Faculdade de Medicina (Famed)”, afirma o pró-reitor. 


Para Penildon Filho, os alunos do BI de Saúde são afetado por uma competição que se repete há décadas em todo o país. “No Brasil, médico é visto como o profissional de maior status na sociedade, seja pela probabilidade de receber melhores salários seja pelo poder simbólico atribuído a ele. Por isso, Medicina sempre teve um grau de concorrência bem maior que as demais. A história dos vestibulares da Ufba e de outras universidades comprovam isso. É algo que veio de fora”, salienta.

Como existem de 1.000 a 1.200 alunos competindo por 32 vagas, diz Penildon Filho, a disputa travada no BI de Saúde ganhou tal proporção, abrindo espaço para o surgimento de problemas de ordem psicológica e emocional entre estudantes que se lançam na odisseia pelas melhores notas do curso.

“Uma das propostas da Prograd apresentada à direção do Ihac é igular os pesos das disciplinas para equilibrar a competição e evitar distorções, mas isso depende de aprovação pela Congregação do instituto”, informa.

“Nós também oferecemos atendimento e acompanhamento psicológico através dos serviços médicos da Ufba e da rede Psiu, voltada a cuidar da saúde mental da comunidade acadêmica. A universidade tem como solucionar o problema, mas só parte dele. Não dá para resolver a cobiça pelo curso de Medicina”, conclui o pró-reitor.|correiodabahia*


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