Aliado do poder por cinco
décadas, baiano, que faria 90 anos, foi deputado, governador, senador e
ministro. Frasista, chamou Temer de 'mordomo de filme de terror'
"Nas últimas cinco décadas, o país se acostumou a associar a sigla ACM à palavra poder. Em determinados períodos, foram realmente sinônimos. Antonio Carlos Peixoto de Magalhães, de 79 anos, baiano, deputado estadual, deputado federal, prefeito, governador, ministro e senador foi um protagonista da história republicana recente. O temperamento beligerante e a língua afiada garantiram-lhe admiradores, seguidores, adversários e inimigos". Assim iniciava a reportagem, assinada por Lydia Medeiros, publicada no GLOBO em 21 de julho de 2007, dia seguinte à morte do político baiano.
Nesse meio século, ACM viveu com gosto o papel de acusador, mas foi também pivô de crises, alvo de acusações e peça central de escândalos. Usou o poder e suas benesses como poucos — para o bem e para o mal. Afagou amigos e perseguiu opositores sem trégua. Era chamado de Toninho Malvadeza, mas encarnava também o Toninho Ternura. Preferia ser o "Leão da Bahia". Alternou vitórias e derrotas. A mais recente, antes da sua morte, a eleição do petista Jaques Wagner, tirou seu grupo do governo baiano depois de 40 anos de mando e 16 de hegemonia. Foi o crepúsculo de um outono iniciado em 1998, com a morte prematura do filho Luis Eduardo Magalhães. Enfraquecido no berço político e esmaecido no cenário nacional com a ascensão do presidente Lula e do PT, ACM não resistiu, encerrando uma das mais polêmicas carreiras políticas do país.
A vocação para a política veio do berço. Antonio Carlos Magalhães nasceu na cidade de Salvador, no dia 4 de setembro de 1927. O pai, Francisco Peixoto de Magalhães Neto, médico e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, foi constituinte, em 1934, pelo PSD, e deputado federal até a instalação da ditadura do Estado Novo, em 1937, comandada por Getúlio Vargas, que se estenderia até 1945. Como o pai, Antonio Carlos se formou em medicina. Antes do diploma, em 1952, dedicava-se ao jornalismo. Começou aos 16 anos, no "Estado da Bahia", e continuaria escrevendo até 1960.
O primeiro mandato foi conquistado em 1954, deputado estadual pela UDN baiana, depois de entrar na política guiado por Juracy Magalhães, um dos chefes políticos da Revolução de 30. Em 1958, chegou à Câmara dos Deputados, ainda no Rio de Janeiro, então capital do país. Apesar de udenista, Antonio Carlos apoiou Juscelino Kubitschek, do PSD, de quem se tornou amigo. Falavam-se todas as manhãs, às 7h. O telefonema diário rendeu-lhe o apelido de "despertador de presidente".
Na Câmara, Antonio Carlos se opunha ao colega de partido Carlos Lacerda, adversário implacável de JK. Jânio Quadros foi outro desafeto na UDN. O auge das péssimas relações entre ambos ficou registrado num telegrama corrosivo enviado pelo deputado ao presidente, depois que Jânio afastou Edgar Santos da reitoria da Universidade Federal da Bahia. Santos nomeara ACM professor-adjunto da Faculdade de Medicina e fora o responsável por seu ingresso na UDN. "A mesquinharia de seu gesto dá a medida exata de seu caráter". Os Correios se recusaram a enviar a mensagem, mas ACM a estampou nos jornais.
Foi também nesse período de sua passagem pela Câmara que Antonio Carlos protagonizou um dos episódios tensos da história política brasileira, ao trocar insultos com o então deputado Tenório Cavalcanti — conhecido como "homem da capa preta", que costumava andar armado com uma metralhadora e a quem foram atribuídos mais de 25 crimes violentos na Baixada Fluminense. Após ser chamado de ladrão por ACM, Tenório sacou o seu revólver e gritou que iria matá-lo. Segundo versões, ele teria desistido. Pouco depois, em 1964, ACM teria usado suas boas relações com o governo militar para conseguir a cassação dos direitos políticos de Tenório, que jamais recuperaria seu poder.
Com a renúncia de Jânio e a ascensão de João Goulart, Antonio Carlos se manteve na oposição e conspirou para o 31 março de 1964. Naquele dia, estava na Câmara e fez um discurso intitulado "A multiplicação dos pães e dos peixes", minucioso levantamento das propriedades de Jango. Na noite da véspera, jogou cartas com oficiais que lhe asseguraram: não reagiriam contra o golpe militar que levou o general Castelo Branco ao poder.
Reeleito em 1966, licenciou-se no ano seguinte, nomeado prefeito de Salvador. Marcou a gestão com obras públicas, disputou e venceu a eleição indireta para o governo do estado em 1970, indicado pelo presidente general Emílio Garrastazu Médici. Apesar de uma administração modernizadora, que levou a industrialização ao estado, não fez o sucessor. Clériston Andrade perdeu para Roberto Santos — filho do ex-reitor Edgar Santos. Foram nove meses (março a novembro de 1975) sem mandato ou cargo, até que o presidente Ernesto Geisel o escolhesse presidente da Eletrobrás. "Eu parecia uma fera numa jaula. Todo mundo me atacava e eu não tinha por onde me defender", disse sobre o período. A volta ao Executivo baiano aconteceu em 1978, também por nomeação.
No governo João Figueiredo, em 1980, o fim do bipartidarismo levou ACM ao Partido Democrático Social (PDS), sucedâneo da Arena. Dois anos depois, o país teria a primeira eleição direta para governador pós-64. Seu candidato, de novo Clériston Andrade, morreu num desastre 40 dias antes da eleição e foi substituído pelo deputado João Durval. ACM deu o troco: Durval derrotou Roberto Santos. Fora do governo, ACM conservou o poder. Na última eleição presidencial indireta, apoiou Mário Andreazza contra Paulo Maluf para candidato do PDS. Perdeu a convenção, em 1984, e, dias depois aderiu à dissidência do PDS, a Frente Liberal, e à candidatura de Tancredo Neves.
Em 3 de setembro de 1984, o ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, na Bahia, acusou Antonio Carlos de trair "a revolução de 64". No dia seguinte, seu aniversário, ACM respondeu que traidor era quem apoiava um corrupto como Maluf. O episódio rendeu-lhe o apelido de Toninho Malvadeza. Tancredo escolhera Antonio Carlos para ministro das Comunicações. José Sarney o manteve no cargo, de onde articulou ativamente na Assembléia Nacional Constituinte. Ajudou a formar o chamado Centrão e a manter o mandato de cinco anos de Sarney, sendo acusado de comprar apoio político com a distribuição de concessões de rádio e canais de TV.
Em 1986, já no PFL, o poder que acumulara não bastou para manter o comando na Bahia, e Waldir Pires se elegeu governador. No entanto, Pires não teve fôlego contra o carlismo e seu domínio sobre a máquina pública, sobretudo por deixar o governo em 1989 para formar a chapa de Ulysses Guimarães à Presidência. ACM voltou ao governo baiano em 1990, pelo voto direto, em esmagadora vitória contra Roberto Santos.
ACM apoiou Fernando Collor e contestou a legalidade do impeachment. Detinha boa parcela de poder e qualquer mudança significaria prejuízo político. Com Itamar Franco, tentou continuar no topo. Marcou audiência para entregar-lhe um dossiê sobre corrupção no governo, mas foi pego numa cilada ao ser recebido também por repórteres e holofotes. O discurso, baseado em denúncias nem sempre comprovadas, enfraqueceu. Aliado de Fernando Henrique Cardoso, ajudou seu governo como senador, chefe de uma bancada numerosa e presidente do Senado (1997-2000). Sua força à época permitiu-lhe cunhar a frase: "Jantar que eu não vou não vale". Apesar da aliança, atacou o governo quando foi decretada a intervenção no Banco Econômico, do amigo Ângelo Calmon de Sá.
O golpe mais duro viria em 21 de abril de 1998, quando um infarto fulminante matou Luis Eduardo. A partir daí, ACM tentou mudar as cores de sua biografia e redesenhar o futuro. Elegeu como bandeira o salário mínimo de US$ 100, criou a CPI do Judiciário, que revelou as falcatruas do juiz Nicolau dos Santos e suas relações com o então senador Luiz Estevão, que terminou cassado. O episódio culminou no chamado escândalo do painel, quando ACM quebrou o sigilo da votação que cassou Estevão. Descoberta a fraude, renunciou, em maio de 2001, para preservar os direitos políticos. Experimentando inédita solidão, pedia aos colegas: "Não façam prejulgamento. Estão querendo me matar".
Ali, os horizontes de ACM eram restritos à Bahia. Mas no ano seguinte o "leão" voltou a rugir, reelegendo-se com folga — e logo arriscou mais uma vez os votos que recebera. Mal tomou posse, ACM foi envolvido em grampos telefônicos ilegais no estado. Os colegas, inclusive do PT, decidiram poupá-lo, e o senador até prometeu domar o temperamento e ser mais humilde. Em 15 de junho de 1999, em troca de farpas com o então presidente da Câmara, Michel Temer, soltou a seguinte pérola: "Não me impressiona sua pose de mordomo de filme de terror". No dia seguinte, veio o troco: "O senador tem mania de tentar avacalhar as pessoas. Em matéria de moral dou de dez a zero no senador."
O ano de 2003 marcou a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT. Prefeitos que antes dependiam do governo baiano se ancoraram em programas federais, como o Bolsa Família. ACM perdeu fôlego. Flertou com o governo, mas as eleições municipais indicaram o caminho da oposição. Tornou-se um ácido crítico de Lula no plenário. Nas eleições de 2006, a sigla ganhou feições remoçadas, com a chegada de ACM Neto à Câmara. Mas o patriarca sentiu o desgosto de viver longe do poder que tanto cultivara. Deixou a arena.
O senado morreu em 20 de julho de 2007, aos 79 anos, de falência múltipla de órgãos e insuficiência cardíaca, após período de internação de 37 dias no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, para tratar de problemas cardíacos e renais. No mesmo dia, seu corpo seguiu num avião da FAB, cedido pela Presidência da República, para Salvador, onde foi enterrado no jazigo da família no cemitério Campo Santo, ao lado do filho, Luis Eduardo Magalhães. Segundo informações do Incor, na hora da morte o senador estava acompanhado pela mulher, Arlete Maron de Magalhães, pelos filhos Antonio Carlos Magalhães Junior e Teresa Helena, e por netos, entre entres o deputado ACM Neto. Políticos e empresários foram ao Incor para prestar solidariedade à família, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e o senador Romeu Tuma (DEM-SP).|oglobo