Um filho ilustre do município de Inhambupe, conhecido
por poucos, é João
Alves de Torres, conhecido como Joãozinho da Goméia. "De família
católica, chegou a ser coroinha, mas por motivo de
saúde, ainda menino João Alves Torres Filho foi iniciado para o mundo do candomblé na feitura de santo pelo Pai Severiano Manuel." No último dia 27 de março, foi a data de centenário de
nascimento de Joãozinho da Goméia. (Inhambupe, 27
de Março de 1914 - São
Paulo, 19
de Março de 1971).
Silvio Carvalho |
O cidadão inhambupense - compositor e educador Silvio Carvalho, em homenagem
ao centenário, postou em sua página de relacionamento um texto sobre Joãozinho
da Goméia. O blog republica na integra. Vejam!
Há um texto do Roberto Gambini, intitulado “A alma
ancestral”, que trata de uma questão muito séria: a importância da nossa
ancestralidade indígena. Como junguiano coerente, o autor nos chama a atenção
para o significado de integrarmos a nossa sombra, ou seja, de trazermos à
consciência aquilo que está reprimido em nossa psique. Lembrei-me do referido texto, em razão do
centenário do meu ilustre conterrâneo João Alves de Torres Filho, Joãozinho da
Goméia, comemorado no dia 27 de março de 2014. Mas, por que essa associação?
Explico.
Nos versos do Hino de Inhambupe, torrão natal meu e
de Joãozinho, o seu autor refere-se a “Dantas, Sátiro Dias e Leão Veloso / E
outros vultos que passaram na história” como exemplos de uma genialidade inata
àquele “lugar de proeminência”, denominado por ele de “ninho de gênios de
existência gloriosa”. Sem desconsiderar o valor dos três políticos citados
nominalmente, mesmo porque hoje em dia é muito difícil se encontrar algum
ocupante de cargo público com a dignidade e a honradez de um Sátiro Dias, sempre
questionei o excesso de auto-estima e ufanismo contidos no hino. Primeiro,
porque os respectivos “vultos” foram atuantes no campo político e, como é
sabido, nunca se exigiu de políticos e ocupantes de cargo público, neste país,
nenhuma genialidade de existência gloriosa. Ao contrário. O que vemos, na
maioria das vezes, são figuras corruptas, medíocres e subservientes serem
escolhidas para comandar os interesses públicos. Segundo, o autor enaltece um
passado que parece não mais existir (“Outrora, na justiça culminei / E tive
dias áureos na instrução”. Não privilegiamos mais a justiça e a educação? Pelo
visto...). Por último, a letra do hino não destaca a mistura cultural do nosso
povo. Ao contrário, reforça a idéia de uma sociedade eminentemente branca, católica,
aristocrata rural, superior.
Entendo o entusiasmo ufanista do nosso compositor,
uma vez que as influências parnasianas no início do século passado, época em
que Dr. Tote compôs o hino, eram muito fortes. Entretanto, diante dessa extrema
valorização de um apogeu pretérito, em que os citados “vultos” são “frutos do
meu seio carinhoso / Meu orgulho, minha glória!”, não entendo a permanente
insistência de Inhambupe em negar a memória do seu filho mais ilustre e mais
conhecido: João Alves de Torres Filho. Talvez, considerando a figura de
Joãozinho, pudéssemos falar de uma genialidade inhambupense. Artista
consagrado, o líder espiritual mais representativo do candomblé de caboclo,
corajoso, inteligente e estudado dentro e fora do país, esse babalorixá-negro-inhambupense
protagonizou cenas que desafiaram todo o tipo de preconceito, tanto na condição
de artista e de pai de santo, como de celebridade nacional. Em 1954, por
exemplo, na condição de convidado, Joãozinho da Goméia, fantasiado de vedete,
adentrou o baile de carnaval do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, símbolo da
elite branca, política e econômica do país. O feito teve tanta repercussão que
se tornou notícia de capa da prestigiada revista O Cruzeiro.
Joãozinho da Goméia |
É nesse ponto que associo o texto de Roberto
Gambini às comemorações do centenário de Joãozinho da Goméia. Ao silenciar-se
diante da memória do seu filho negro, babalorixá, artista e homossexual,
Inhambupe reprime a sua sombra, ao tempo em que infla seu ego europeizado,
branco, católico e heterossexual, como se a nossa gênese se reduzisse a essas
marcas. Ensina-nos Carl Jung que a sombra, ao ser integrada, torna-se a nossa
maior riqueza; quando reprimida, a nossa desgraça. Ou seja, é preciso
assumirmos aquilo que negamos. É preciso luz nas trevas. É preciso integrar
Self e Ego.
Não vejo nenhum problema em se cantar, nas escolas
da minha terra, o hino inhambupense. Mesmo porque tive a honra de gravá-lo,
juntamente com os meus filhos Silvio e Ana Verena. Mas, considero importante,
também, aprendermos a reverenciar as nossas ancestralidades. O centenário de
Joãozinho da Goméia não pode ser silenciado em Inhambupe. Certamente, ele é
merecedor de todas as homenagens possíveis. Mesmo que tarde, sejamos capazes de
lhe prestar uma homenagem a altura da sua competência, da sua generosidade, da
sua coragem, do seu talento, da sua representatividade. Como o ano é de
eleição, talvez os interesses politiqueiros em conquistar apoios das religiões
afros descendentes facilitem a realização de alguma coisa. O problema é se o
evangelismo tiver mais votos. Silvio Carvalho